ENTREVISTA: ‘A IMPUNIDADE DO PASSADO GARANTE A IMPUNIDADE DO PRESENTE’, DIZ EX-PRESIDENTE DA COMISSÃO DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS

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ENTREVISTA: ‘A IMPUNIDADE DO PASSADO GARANTE A IMPUNIDADE DO PRESENTE’, DIZ EX-PRESIDENTE DA COMISSÃO DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS

The Intercept Brasil – Tatiana Merlino – ÀS 7 DA MANHàdo dia 1º de agosto, a procuradora-regional da República Eugênia Augusta Gonzaga recebeu uma mensagem de uma repórter. Era uma nota informando que Gonzaga havia sido exonerada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que ela presidia desde 2014. Chocada, pouco depois confirmou a informação, publicada no Diário Oficial. A presidência da República não a comunicou oficialmente sobre seu afastamento.

Aos 50 anos de idade – quase 20 deles de luta pelo resgate da memória, reparação e justiça em relação aos crimes cometidos pela ditadura militar –, a procuradora é um dos alvos das recentes investidas do presidente Jair Bolsonaro contra vítimas, familiares de desaparecidos e comissões responsáveis pela reparação de atingidos pelo regime.

“Se o presidente da OAB quiser saber como o pai desapareceu, eu conto”, provocou Bolsonaro em 29 de julho, referindo-se ao sequestro, morte e desaparecimento de Fernando Santa Cruz, pai de Felipe Santa Cruz, em 1974. Gonzaga reagiu duramente: “nunca um presidente da República, nem mesmo da própria ditadura, ousou atacar uma família de maneira tão vil”, escreveu na página da comissão no Facebook no dia seguinte. Para a procuradora, o presidente usou “o mesmo método que agentes dos porões, como CurióFleury e Ustra, utilizavam para assassinar também a reputação de suas vítimas e desviar o foco de suas responsabilidades”. Demorou dois dias para que ela — e outros três membros da equipe — fossem exonerados.

A equipe era responsável por buscar e identificar pessoas mortas e desaparecidas durante o regime militar. O trabalho nunca foi fácil. Suas iniciativas esbarram em entraves administrativos, na burocracia e na falta de verbas – todo o dinheiro da comissão veio de emendas parlamentares de deputados do PT, Psol e Rede. É um processo hercúleo, que passa por mapear possíveis cemitérios e valas, recolher e identificar ossadas e prestar esclarecimentos às famílias – além de buscar, do lado do governo, a justiça e a reparação.

Agora, as pessoas responsáveis por investigar os crimes da ditadura são homens que defendem o regime militar abertamente. No lugar de Gonzaga, Bolsonaro nomeou o advogado Marco Vinicius Pereira de Carvalho, ex-assessor da ministra Damares Alves e filiado ao PSL, partido do presidente. Carvalho nunca atuou na área. Seu currículo é marcado por ter feito um pedido de impeachment do ministro do STF Dias Toffoli por crime de responsabilidade – hoje arquivado – e por ter sido afastado do cargo de procurador da cidade de Taió, em Santa Catarina, por improbidade administrativa. Segundo a acusação do Ministério Público, Carvalho vazou a minuta de um edital de concurso público para sua mulher. O processo foi arquivado quando ele foi nomeado assessor de Damares Alves.

‘As pessoas que estão lá atacam as famílias, dizem que não houve ditadura.’

Como outros membros da comissão, o governo nomeou Filipe Barros, deputado federal também pelo PSL – que acredita que a ditadura deve ser comemorada – e o coronel da reserva Weslei Antônio Maretti, que tem a mesma opinião que Bolsonaro sobre Carlos Alberto Brilhante Ustra. Para ele, o ex-comandante do centro de tortura DOI-CODI e torturador declarado pela justiça é “exemplo para todos os que um dia se comprometeram a dedicar-se inteiramente ao serviço da pátria”.

Gonzaga ficou chocada com o seu afastamento. Sob sua gestão, foi criado o Grupo de Trabalho Perus, responsável por identificar ossadas em São Paulo. Especialistas da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, estão analisando 1.047 restos mortais de possíveis desaparecidos políticos enterrados no cemitério de Perus. Duas ossadas já foram identificadas: a de Dimas Casemiro, desaparecido em abril de 1971, foi entregue à família em agosto de 2018. E a segunda, Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, desaparecido desde 1971, foi identificada em dezembro de 2018. Em cinco anos, a comissão emitiu 33 atestados de óbito – 12 deles com a certidão retificada.

“Não deram nenhuma oportunidade para terminarmos trabalhos importantes em andamento”, me disse Gonzaga. “Há atestados de óbito emitidos que eu sequer pude assinar.” Para ela, Bolsonaro vem descumprindo princípios pelos quais qualquer servidor público poderia ser exonerado, e a tolerância aos abusos do governo de hoje estão ligados à impunidade do passado. “Os países que fizeram a transição baseando-se no esquecimento, na base do ‘vamos apagar, virar a página’, não conseguiram amadurecimento democrático e ficaram sujeitos a graves retrocessos na democracia.”

A procuradora se despede da comissão entregando um relatório sobre o trabalho realizado às famílias de mortos e desaparecidos. “Meu compromisso é com eles”. O documento não será entregue ao governo, e o Intercept o publica agora com exclusividade.

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