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Ana Estela Haddad fala sobre promoção de políticas públicas destinadas à primeira infância / Foto: Reprodução TVT
Em entrevista ao Brasil de Fato, ex-primeira dama de São Paulo analisa políticas públicas do setor em meio a retrocessos
Lu Sudré | Brasil de Fato | São Paulo (SP) – A promoção de políticas públicas destinadas à primeira infância, período que compreende do nascimento até os seis anos de vida de uma criança, deve ser implementada em conjunto com políticas socioeconômicas contra a desigualdade. A consideração é de Ana Estela Haddad, gestora pública e ex-primeira dama da cidade de São Paulo. Ela coordenou o programa São Paulo Carinhosa durante a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT).
Devido à sua atuação na área, Michelle Bachelet, ex-presidenta do Chile e comissária dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a convidou para participar de uma rede internacional de proteção à primeira infância, a Fundação Horizonte Ciudadano (Horizonte Cidadão, em português).
Em entrevista ao Brasil de Fato, Ana Estela Haddad confirma que aceitou o convite e que o lançamento da rede ocorrerá entre os dias 6 e 8 de novembro, em Santiago, no Chile. A Fundação tem como objetivo pensar ações na área voltadas para a América Latina.
O cenário brasileiro, na opinião de Ana Estela, é de retrocesso. Segundo a professora da Universidade de São Paulo (USP), cortes orçamentários feito pelo governo Michel Temer (MDB) e mantidos pela gestão Jair Bolsonaro (PSL) comprometem o desenvolvimento de políticas que realmente façam diferença na vida de milhões de crianças brasileiras.
A ex-primeira dama de São Paulo também foi assessora do Ministério da Educação entre 2003 e 2005. Ela avalia que as políticas dos últimos governos impactaram duramente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), comprometendo a qualidade da educação e a garantia dos direitos das crianças.
Brasil de Fato: Como você recebeu o convite da Michelle Bachelet? Qual é qual a sua perspectiva de atuação na fundação Horizonte Cidadão?
Ana Estela Haddad: Foi uma grande satisfação, uma surpresa também receber o convite. Eu recebi um telefonema da assessoria dela [da Bachelet] a uns 20 dias atrás formulando esse convite, que depois veio também por meio de uma carta oficializando.
Nós vamos ter o lançamento dessa rede latino-americana de proteção à primeira infância no início de novembro, entre os dias 6 e 8 de novembro. Vai ser em Santiago, no Chile.
Eu já confirmei minha participação. E pelo que nós recebemos de material, ela está identificando lideranças na região latino-americana que possam contribuir com experiências bem-sucedidas, para que a gente possa desenvolver iniciativas para proteção para melhorar as condições da primeira infância nos países da América Latina.
Em relação à sua trajetória acadêmica e na gestão pública, como você se aproximou dessa área da primeira infância?
A minha relação com a área da infância e da adolescência é bem antiga. Eu sou odontopediatra. Por muitos anos cliniquei na odontopediatria. Sempre me preocupei com o crescimento e com o desenvolvimento infantil integral e com os vínculos familiares.
Na época da gestão municipal do Haddad na Prefeitura de São Paulo, a gente tomou a decisão de que eu me dedicaria a esse tema nas políticas públicas.
Eu já trabalhava com políticas públicas antes. Trabalhei no governo federal, na educação e na saúde, mas foi na prefeitura que eu juntei as duas experiências: a com políticas públicas e a minha paixão – a convicção sobre a importância da gente cuidar da infância, em especial nesses primeiros mil dias de vida que são muito preciosos.
Qual é a importância de uma política estruturada voltada especialmente para essa área da primeira infância? A partir dessa política, quais mazelas sociais podem ser evitadas?
Me chamou muito a atenção o lançamento do Brasil Carinhoso, do governo federal, que inclusive me inspirou a formular e implementar a “São Paulo Carinhosa”.
O Brasil Carinhoso nasce do Bolsa Família. O Bolsa Família foi uma política muito impactante, muito importante, que tirou da situação de extrema pobreza e da miséria uma porcentagem importantíssima da população, mais de 32 milhões de pessoas.
Ele foi feito numa construção intersetorial, como a questão de ter criado um cadastro de registro dessas famílias, o Cad Único. Ele permitiu um monitoramento – que não se tinha antes – e a identificação de que havia famílias jovens com crianças ainda numa situação de extrema pobreza. Isso fez com que se colocasse um foco nessas famílias.
É muito importante focar na primeira infância, mas é importante também focar em políticas sociais e também intersetoriais mais amplas, que tenham como foco a família, as pessoas em situação de maior vulnerabilidade.
Ao cuidar das famílias, a gente vai estar cuidando das crianças também. Então, não adianta querer cuidar só da primeira infância sem olhar para o que está no entorno. A situação de vulnerabilidade social e econômica, essa é uma questão.
A outra, que também é muito importante nas políticas sociais, tem caráter mais amplo. O que nós fizemos no município de São Paulo, com a “São Paulo Carinhosa”, foi procurar trabalhar da forma mais ampla possível.
Nosso comitê gestor da “São Paulo Carinhosa” foi composto por 14 secretarias do município. Não apenas as mais óbvias, como saúde, educação e assistência social. Teve um caráter bem ampliado.
É pensar a criança na cidade. É pensar a cidade para a criança. É pensar a cidade sob o olhar da criança. Isso é uma coisa muito interessante e estimulante de se fazer.
Quando você pensa, por exemplo, o desenvolvimento urbano, o espaço da cidade, o espaço público de uma praça na perspectiva de uma criança – que tem uma altura de 95 cm a 1 m –, como você pode fazer a cidade ser mais convidativa, mais humanizada? Se a cidade for boa para a criança, ela vai ser para qualquer cidadão.
A outra questão é trabalhar uma série de aspectos de promoção de saúde, de prevenção, de educação desde cedo. A gente sabe que os primeiros mil dias de vida são uma grande janela de oportunidade. Em nenhuma outra fase da vida existe uma atividade cerebral tão intensa. A estrutura cerebral está se constituindo, como se fosse a fundação de uma casa. É a fase da vida em que você tem o maior número de conexões nervosas, de sinapses.
E isso, a gente sabe hoje que não está condicionado geneticamente. Está fortemente influenciado pelos fatores ambientais e por como essa criança é cuidada em termos de proteção, de alimentação, de vínculos afetivos que ela pode estabelecer. Tudo isso é determinante para o desenvolvimento global dessa criança.
Fazer com que o espaço da família e o espaço da comunidade sejam espaços holisticamente promotores do desenvolvimento infantil é uma forma de promover a equidade nas políticas públicas desde o início, para não ter que corrigir depois as desigualdades que se criam desde essa etapa.
Você falou sobre a experiência com a “São Paulo Carinhosa” como uma forma de reconhecer a criança como um cidadão dotado de direitos social e do espaço. É uma outra visão sobre as crianças?
Exato. Perfeito! A gente trabalhou a questão de endereçar questões que são fundamentais para a criança. Na saúde, por exemplo, nós focamos em uma formação das equipes de saúde da família, que já fazem a visita domiciliar, mas nós desenvolvemos um curso voltado para questões que ainda não eram tão endereçadas.
A caderneta de saúde da criança, por exemplo: ela já faz o acompanhamento do crescimento físico, da vacinação, da questão motora, isso tudo está lá na caderneta, mas uma coisa que ainda não estava endereçada é justamente a questão das competências familiares para o cuidado e o vínculo afetivo que se estabelece nessa fase.
No curso, a gente trabalhou essas questões no processo de formação. Identificamos em dez territórios da cidade onde estavam as famílias que tinham uma situação de maior vulnerabilidade.
Procuramos trabalhar com as mães adolescentes, famílias com pessoas de escolaridade mais baixa, gravidez de risco, gravidez não planejada, ou gravidez onde a mãe está em situação de uso de substâncias psicoativas… Ou situação de violência.
Todas essas questões trazem uma vulnerabilidade que demandam uma intervenção, um cuidado adicional para que a gente possa criar as melhores condições, então, isso foi muito trabalhado.
Nós procuramos trazer para o município políticas que foram criadas no governo Federal, na gestão do presidente Lula, do próprio Haddad no Ministério da Educação, que ainda não tinham chegado ao município de São Paulo até 2013.
Um exemplo é a ampliação da educação infantil na faixa etária de 0 a 3 anos. Mais de cem mil novas vagas foram criadas, ao mesmo tempo em que se implementou os indicadores de qualidade da educação infantil que não tinham chegado ao município.
Isso foi discutido com toda a rede. Foi um processo riquíssimo de trabalho, tanto a Educação infantil da administração direta, quanto as conveniadas foram envolvidas.
Procuramos capacitar a rede como um todo. A rede se mostrou muito potente porque, além de discutir e implementar esses indicadores que já estavam estabelecidos a nível federal, no município de São Paulo, a própria rede propôs a criação de mais dois indicadores muito interessantes e alinhados com algumas discussões contemporâneas que estão colocadas, como, por exemplo, trazer e discutir desde a educação infantil as questões de gênero e raça. Foi um indicador novo que a rede municipal propôs.
Uma outra foi trazer a questão da autoria desde de os bebês. O bebê pode ser autor. O estímulo à criatividade é uma coisa muito importante, então já começa com essa visão mais ativa e pró-ativa da criança desde o início.
Na mudança curricular, que foi feita no ensino fundamental, um dos ciclos é justamente o ciclo de projetos, que é um ciclo mais autoral. Isso foi proposto pela rede para que passasse a acontecer desde a educação infantil. E foi feito com muito sucesso.
Teve uma experiência que nós implantamos na “São Paulo Carinhosa” que foram os “Parques Sonoros”. Isso trouxe para as crianças uma vivência nesse aspecto da autoria muito interessante.
Outra questão é a participação da criança nas propostas de políticas para a cidade. Nós tivemos uma experiência no Glicério – que é um território de bastante vulnerabilidade – de projetar com as crianças uma praça próxima à casa delas, entre a casa e escola. As próprias crianças foram autoras deste projeto, que foi transformado em uma maquete em um projeto de cultura e extensão da “Escola Belas Artes”.
A maquete foi aprovada pelas crianças. Como esse espaço da praça já tinham moradores em situação de rua, partiu das próprias crianças a proposta de que os moradores de rua pudessem ser monitores da praça. Não foram excludentes e nem deixaram de considerar que eles estavam lá presentes, mas procuraram incluí-los.
Questões como essas mostram como a gente precisa mesmo criar as oportunidades para que esse exercício da participação da cidadania possa aflorar e acontecer desde cedo.
Tudo isso que você está falando sobre essas políticas sociais que vão muito para além da infância, me retoma muito as iniciativas de desenvolvimento sustentável da agenda 2030, que é também um dos objetivos da “Fundação Horizonte Cidadão”. Isso ajuda nesse desenvolvimento aqui na região da América Latina.
Exato. É isso mesmo. O Brasil e São Paulo têm muito a contribuir pelas experiências que desenvolvemos com muito sucesso, pelas dimensões com que essas experiências foram desenvolvidas. Nós somos um país continental e uma cidade grande, uma metrópole de alta complexidade.
Uma política que consegue se fazer bem-sucedida numa cidade com a complexidade e o tamanho de São Paulo, com certeza é uma experiência que pode inspirar a sua replicação em outros países e em outras cidades.
Com as mudanças de gestão, tanto na prefeitura, quanto no estado de São Paulo, dessas ações que você acabou descrever, quais se mantiveram? Qual é a atual situação das políticas de primeira infância aqui em São Paulo?
Uma das coisas que eu acho bonito, quando a gente está formulando e implementando política pública, é pensar sempre na perspectiva de que a gente sempre está de forma transitória.
As políticas públicas precisam ter sustentabilidade para que elas – desde que sejam importantes, pertinentes – sejam apropriadas pela população e tenham continuidade, para além do período em que você está fazendo uma indução para que elas aconteçam.
Apesar de nós termos deixado registro, como a publicação de um livro importante. Aliás, esse livro foi a razão de eu receber o convite da presidente Michelle Bachelet. E neste livro, nós procuramos divulgar e deixar disponível na prefeitura, no estado, no Governo Federal, a partir de uma série de agentes.
Infelizmente não houve uma priorização e uma continuidade dessas ações no município. Agora, por outro lado, uma série de ações que nós fizemos, a gente pode avaliar e perceber que o benefício que foi trazido naquele momento pode ser incorporado.
Eu vou citar o exemplo da saúde e da formação que nós fizemos com as equipes de saúde da família, com os agentes comunitários de saúde.
Na época, nós fizemos um convênio com o Ministério da Saúde, com a coordenação de saúde da criança e recebemos um recurso para fazer toda essa ação. Havia uma disputa de modelo sobre a visita domiciliar.
Os modelos internacionais e também o modelo que hoje é usado pelo “Criança Feliz”, que é o programa do Governo Federal, que veio para essa questão da primeira infância.
Eles trabalham com um visitador, sendo um profissional, ou um estudante que está fazendo faculdade. O Ministério nos propôs que assim fosse feito também, porque os programas internacionais são feitos com profissionais de nível superior.
Eu argumentei para fazer uma escolha diferente dessa. Nós fizemos a opção de trabalhar com foco grande no agente comunitário de saúde juntamente com a equipe da saúde da família, enfermeiros, médicos que também participam deste processo.
Nosso argumento foi o de que o agente comunitário, em primeiro lugar, já faz a visita domiciliar, não há novidade. Ele só ia ter mais elementos para fazer uma visita com mais qualidade. Ele tem uma proximidade com a problemática da comunidade, que muitas vezes é uma problemática que ele também vivência.
Então, ele tem uma facilidade de comunicação e de, se bem orientado, entrar em contato com essa situação sem maiores choques e sofrimento que um profissional, às vezes, de nível superior não tem.
E isso, a gente pode comprovar em um seminário internacional. Uma psicóloga americana, que capacita os visitadores nos Estados Unidos, trouxe um depoimento.
Ela disse o quanto esses profissionais, por não estarem acostumados com aquela realidade de alta vulnerabilidade, entravam em sofrimento e precisavam de um suporte para dar conta de trabalhar com aquelas famílias.
Na medida em que a gente trabalhou com os agentes comunitários, a gente fez um estudo qualitativo sobre isso. A gente pode perceber que eles incorporaram todo aquele conhecimento novo, aquelas novas vivências, nas visitas domiciliares.
Está muito claro, nos depoimentos dos estudos que a gente a fez, que eles incorporaram isso na sua própria vida, na de seus filhos, na de seus netos. Foi uma coisa que eles foram refletindo no curso, incorporaram na sua vida pessoal e com isso conseguiram levar para a sua vida profissional. Então, mesmo depois de terminado o programa, aquilo que eles receberam na qualificação, que nós vivenciamos com eles, que a gente problematizou e que eles incorporaram na sua prática continuou como uma tecnologia incorporada pelo sistema.
O que não teria acontecido se a gente tivesse investido esse dinheiro como está fazendo, por exemplo, o “Criança Feliz”, que trabalha com estudantes. Na hora que a bolsa desses estudantes acabar, ou na hora em que eles não recebem mais esse suporte, eles vão parar de fazer a visita, aquela capacitação, aquela vivência toda que foi feita, ela vai embora. Ela não está incorporada em benefício da população.
A política pública precisa buscar sustentabilidade. As escolhas que o gestor faz hoje vão refletir futuramente. Como ele investe aquele recurso público é muito importante. A gente fez a escolha correta e alguns estudos que a gente fez depois de completado o ciclo e que estão aí, em fase de publicação, demonstram isso.
Em que estágio você acha que o Brasil está hoje no desenvolvimento de políticas públicas? É suficiente o que está sendo colocado?
Lamentavelmente o “Criança Feliz” foi implementado desde o governo Temer. Eu agora tenho ouvido pouco sobre ele, mas acredito que ele esteja tendo alguma continuidade. Ele está no mesmo ministério que também cuida do Bolsa Família, e a gente sabe que o Bolsa Família vem sofrendo sucessivas reduções.
Então, acha que está cuidando das crianças de um lado, mas está desassistindo as famílias. Como você acha que pode está cuidando bem da criança se a família está em uma condição de vulnerabilidade?
Desde a emenda constitucional que congelou o teto de gastos da educação e da saúde, nós estamos numa franca redireção dessas políticas públicas tão fundamentais, tão importante e tão estruturantes, isso é lamentável.
A análise é de que essas políticas para primeira infância tem que estar completamente interligada com o todas essas outras políticas públicas?
Exato. Se você tem uma família em situação de extrema pobreza, você vai levar a visita domiciliar, mas a família não tem o recurso nem para a alimentação básica, de que adianta?
Você não tem vaga para a criança ir para a escola desde cedo, de 0 a 3 anos, principalmente nas famílias de maior vulnerabilidade. Se a mãe precisa trabalhar, se a mãe tem uma baixa escolaridade, como é que essa criança vai ser adequadamente estimulada?
A gente sabe que, por exemplo, para uma criança ser bem alfabetizada aos 5 ou 6 anos, o que aconteceu de 0 a 3 importa, por isso a educação infantil tem uma função importantíssima. E foi feita essa expansão, foi feito o Fundeb naquele período. Foram escolhas baseadas em evidências científicas.
O currículo, o estímulo, ele é muito importante. Tem estudos mostrando, por exemplo, que aos 3 anos de idade se você considerar duas crianças com a diferença de escolaridade dos pais, pode haver uma diferença de vocabulário aos 3 anos de idade de quase 25 mil palavras entre uma criança e outra.
Então, como você vai criar uma situação para essa criança desenvolver todos o seu potencial? Você precisa melhorar a situação social das famílias. As famílias precisam poder trabalhar. Os pais precisam receber condições para melhorar sua escolaridade. O Bolsa Família estava fazendo esse trabalho de forma intersetorial com muita competência, com o estudo científicos publicados na The Lancet, uma série de revistas, aí comprovam.
Nós tivemos no nordeste o aumento da estatura média das crianças das famílias beneficiárias do Bolsa Família. Até o crescimento físico vai ser impactado, o que dirá o resto. Se você está implantando o “Criança Feliz”, mas está encolhendo o Bolsa Família, você está dando de um lado e tirando do outro. Do que adianta?
Aproveitando um pouco o que você falou sobre a saúde, eu queria trazer uns dados que mudou aqui no Brasil. Após 13 anos de queda consecutiva na taxa de mortalidade infantil, o número de óbitos voltou a crescer no nosso país. Um levantamento do Ministério da Saúde que indicou um aumento de 11% das crianças que morreram entre 1 mês e 4 anos de idade. A que isso se deve? O que, nesse contexto que você acabou de descrever, a gente pode esperar para os próximos anos?
Tem um estudo muito importante, que faz menos de um mês que foi publicado na revista The Lancet, fez uma análise do Sistema Único de Saúde desde a sua criação e de 30 anos para cá. Eles fizeram uma análise dos principais indicadores, incluindo a mortalidade infantil.
E o que aconteceu nos primeiros 30 anos de SUS? A gente mostra uma evolução positiva no sentido de melhoria da saúde em geral. E apesar de todos os desafios que a gente ainda tem, eles mostram quanto foi uma política acertada e bem-sucedido o Sistema Único de Saúde. Eles procuram fazer uma projeção para os próximos 20 anos com quatro diferentes cenários de financiamento e justamente, um dos cenários é o cenário atual que se dá a partir do congelamento do teto de gastos para educação e saúde, que foi essa Emenda Constitucional 95, aprovada no governo Temer.
A primeira coisa que eu diria é: o Ministério da Saúde precisava ler este estudo, que é um estudo publicado na The Lancet sobre a situação brasileira e procurar reverter o que foi feito com essa emenda constitucional de congelamento de teto de gastos. A gente está vendo isso repercutir na saúde e a gente está vendo isso repercutir na educação, o corte de bolsas, o corte de recursos da pós-graduação.
A gente teve tantas conquistas tão importantes para o Brasil em termos de pesquisa e de formação e vai colocar tudo isso a perder. Não tem desenvolvimento em um país se você não tiver junto com o desenvolvimento econômico o desenvolvimento social, educacional e de saúde. São bens públicos de primeira necessidade.
É muito preocupante o que a gente está vendo acontecer. A questão da mortalidade infantil, em parte, está relacionada a essa questão. A gente sabe que tem havido uma queda na cobertura vacinal e isso é uma preocupação. Você vê agora o surto de sarampo. É preciso retomar as campanhas, a conscientização da população sobre a importância de seguir o calendário vacinal.
No caso do Bolsa Família, por exemplo, entre as condicionalidades colocadas para continuarem a receber o benefício, uma delas é a frequência escolar e a outra é justamente o acompanhamento, seja da gestante, seja da criança na primeira infância e no primeiro período de vida, incluindo a cobertura vacinal. Então, tudo isso é uma política que vinha reforçando a outra e a gente está vendo que tudo isso está se arrefecendo um pouco.
Além desta questão do teto de gastos, a gente tem um projeto de lei orçamentária, do orçamento anual da área da saúde que pretende reduzir mais de 30 milhões para área da saúde. Isso vai continuar impactando a vacinação, por exemplo você citou. Como você avalia?
Impacta tudo, né? Não tem milagre. O que a gente conquistou com a estratégia de saúde da família e com o Bolsa Família em grande parte a redução da mortalidade infantil, a questão do saneamento básico, a questão de você ter uma atenção básica bem estruturada como tem na estratégia de saúde da família, a questão da própria escolaridade materna são questões que impactaram e o Bolsa Família também.
Isso tem estudos científicos extremamente consistentes, robustos que comprovam. Quando a gente começa a descontinuar todas essas políticas, criar um pacote mínimo na atenção básica e cortar certas ações a gente está colocando tudo isso em risco. Enfim, é isso que a gente está infelizmente, lamentavelmente está vivendo neste momento.
Você também atuou no Ministério da Educação. E como você citou aqui, na área do ensino superior a gente está tendo muitos cortes orçamentários e uma situação de sucateamento que está sendo denunciada pelos setores de professores, estudantes e funcionários. Pensando em políticas públicas que integrem as crianças no geral, qual a situação da educação pública na primeira infância? Essa questão do sucateamento também está se repetindo?
Sem dúvida. Os cortes não foram feitos só na educação superior, a educação superior é o que está mais exposta. Os cortes foram gerais, os cortes foram feitos no ensino fundamental, na educação básica também. Isso impacta em tudo. Você reduz vagas.
A gente tem uma meta a atingir no Plano Nacional de Educação que é chegar a 50% de cobertura do 0 a 3 anos, mas ainda não chegou nessa meta em termos de Brasil. É uma necessidade que as famílias têm, as crianças precisam ir para escola. Isso está em risco, isso está claramente em risco. Essa questão de cortar esses recursos é uma coisa muito grave.
Edição: Katarine Flor
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