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Usina de Tucuruí, no Pará, inaugurada em 1984 — uma das 48 hidrelétricas da Eletrobras, que o governo quer privatizar / Foto: Divulgação/Eletronorte
Quando deputado, o capitão reformado apontava o risco de se privatizar áreas como a de energia
Pedro Biondi | Brasil de Fato | Belo Horizonte (BH) – “A ‘qüestão’ (sic) de energia elétrica no Brasil: isso simplesmente é estratégico, é vital. País sério nenhum no mundo faz isso – entregar isso para outros países”, enfatizava um então deputado federal de extrema direita caricata há exatos dois anos, em vídeo no qual se declarava favorável a privatizar “várias coisas”.
“E você estar tirando de uma estatal brasileira para botar nas mãos de uma estatal chinesa?! Ou seja, eles vão decidir o preço da nossa energia e onde, com toda certeza, no futuro, estará chegando essa energia.”
“Espero que o Brasil dure até o final de 2018 para nós podermos mudar em 2019”, concluía na gravação o hoje presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL).
Como previsto, muito patrimônio foi entregue na “Ponte para o futuro” do governo Michel Temer (MDB), mas o capitão reformado não mudou “isso daí”. Pelo contrário. Grupos empresariais controlados por (ou com forte participação de) governos de outros países seguem comprando subsidiárias e lotes nos leilões dos setores elétricos e de petróleo e gás, e despontam como favoritos a arrematar a Eletrobras, caso o governo consiga levar adiante a entrega do patrimônio público.
Uma possível compradora seria justamente a chinesa State Grid. Com 23 concessionárias em 14 estados e 11.169 quilômetros em linhas de transmissão, a State Grid declara-se a maior distribuidora de energia do país.
A chinesa também é apontada como candidata a arrematar a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), que o governador Romeu Zema (Novo) pretende passar adiante, apesar de ter registrado seu melhor balanço semestral – um lucro líquido de R$ 2,1 bilhões.
Três conterrâneas (Sinochem, CTG e CNPC) aparecem em levantamento que estima em R$ 120 bilhões os investimentos realizados no Brasil por empresas estrangeiras nos últimos cinco anos, com destaque também para Espanha, França, Itália, Alemanha e Colômbia.
Uma forte rival é a Enel, que tem o Ministério de Economia e Finança italiano como maior acionista. No ano passado, venceu o leilão para comprar a Eletropaulo, cuja área de concessão abrange 24 cidades da Grande São Paulo e 9,3% da energia elétrica consumida em território brasileiro.
“Energia elétrica não é um produto qualquer”, enfatiza o vice-presidente da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), Nailor Gato. “É consumida por 99,9% dos brasileiros. Na indústria, na agricultura, nos serviços.” Ele estima que o preço do megawatt-hora nas privatizadas (ou desnacionalizadas) sai pelo triplo do praticado pela Eletrobras.
Em agosto, a Câmara derrubou medida provisória de Bolsonaro que repassaria R$ 3,5 bilhões à Eletrobras como reembolso por despesas no passado – uma injeção de recursos públicos que poderia beneficiar futuros compradores.
Outra estatal estrangeira com forte presença no setor é a norueguesa Equinor, antiga StatOil. A operadora produz na faixa de 100 mil barris de petróleo por dia no Brasil – atrás apenas da Petrobras – e instalou no Ceará seu primeiro parque de energia solar na América Latina.
Usina Solar Apodi, no município de Quexeré (CE) tem capacidade para suprir de energia cerca de 170.000 residências por ano.
O governo da Noruega também é o sócio majoritário na mineradora Hydro, que explora bauxita no Pará e foi flagrada com lançamentos clandestinos de rejeitos.
Ao narrar as disputas entre esses titãs, os sites, revistas e cadernos voltados a investidores costumam omitir seu controle estatal ou seu caráter misto.
Combinação energia + saneamento
A desnacionalização do setor elétrico ficaria particularmente perigosa se associada à do saneamento, alerta a presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp (APU), Francisca Adalgisa da Silva.
“Os chineses têm interesse e pagam à vista. Eles vêm investindo pesadamente no setor de infraestrutura e já viram que o Brasil é fácil de comprar. O que tem barrado é a atual legislação”, analisa.
Proposta de mudança no marco legal da área foi arquivada em junho, mas já tramita um projeto de lei com o mesmo teor.
O governador João Doria Jr. fez rodadas de negócios nos Estados Unidos e na China para oferecer entrada na Sabesp, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também vem estimulando a negociação desses patrimônios ou a abertura a parcerias, e o Rio de Janeiro foi o primeiro a dar um passo à frente.
Em contraste, no plano mundial, o setor responde por um terço das reestatizações nas últimas duas décadas.
O economista Marcio Pochmann aponta um reposicionamento das empresas estatais e dos serviços públicos a partir do início deste século. “O que está sendo defendido é basicamente o encolhimento do setor privado”, resume, pontuando que a crise financeira de 2008 mostrou que é neste, e não no setor público, que reside o problema de gestão no capitalismo.
Presidente da Fundação Perseu Abramo, o pesquisador destaca que o Estado está participando do processo de concentração e centralização do capital. “Ele entrou em campo e está disputando. Nesta etapa do capitalismo, país que não tem grande empresa, seja pública ou privada, está fora das possibilidades de decisão de investimento no seu espaço nacional”, anota.
Ele sublinha que, em 2005, só 5% (uma em cada 20) das maiores companhias do mundo eram estatais, e dez anos depois essa fatia saltou para 25% (uma em cada quatro).
Papéis
“Os governos dos outros países estão no direito deles de tentar comprar esses nossos ativos”, pondera o deputado federal Glauber Braga (Psol-RJ). “O nosso é que tinha de fazer seu papel e protegê-los.”
Sete em cada dez brasileiros (70%) são contra a privatizações – uma rejeição semelhante à dirigida a posse e porte de armas, que, no entanto, vai emplacando no país. “São casos diferentes”, defende Braga. “Não se tem um movimento organizado no país, consistente ou com força de massa, de oposição a essa agenda. Já a discussão das estatais tem uma massa de trabalhadores que sabem que estão com a cabeça na guilhotina, juntando com pessoas que são contra as privatizações, e podem unificar sua luta com estudantes e professores.”
Braga lista Canadá, Noruega, Rússia, Índia, Turquia e França como países com prevalência dos entes públicos no setor elétrico. “Alemanha, Austrália e os próprios EUA vetaram investimentos de outros países, de estatais, arguindo o ferimento da sua soberania”, acrescenta.
Segundo seu levantamento, instituições públicas respondem por 73% da capacidade do setor elétrico estadunidense.
Nesta quarta-feira (4), as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo realizam em Brasília ato e seminário com o tema “O Brasil é nosso! Contra as privatizações em defesa do emprego e de nosso futuro”.
Está prevista a criação da Frente Parlamentar e Popular em Defesa da Soberania Nacional.
Portos e gás
Outra a se instalar recentemente no Brasil é a China Merchants Port (CMPort), uma das maiores operadoras de terminais portuários no mundo, que, em 2017, comprou 90% de participação no Terminal de Contêineres de Paranaguá (TCP), no Paraná – um negócio de R$ 2,9 bilhões.
A prioridade é o fluxo comercial entre as duas nações.
Em agosto, a francesa Engie ficou com 90% da parte da Petrobras na Transportadora Associada de Gás (TAG), que mantém uma rede de 4,5 mil quilômetros com capacidade de movimentar 74 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia.
A proposta de US$ 8,6 bilhões (cerca de R$ 33 bilhões) foi feita em conjunto com o fundo canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec, investidor institucional que administra planos de pensão públicos.
A ironia é que o grupo privado Engie resulta de uma manobra do governo francês para evitar a aquisição da Suez pela italiana Enel. Numa concertação que demorou anos, o grupo público Gaz de France foi fundido com o Suez, então alvo de oferta pública.
Em 2017, noutra jogada para isolar os concorrentes italianos, o governo Emmanuel Macron estatizou o estaleiro naval STX France, o maior e mais importante da Europa, capaz de produzir porta-aviões.
Na contramão do mundo
Mapeamento de 2017 contabiliza 884 serviços devolvidos ao controle público em todo o mundo desde o ano de 2000.
São concessões não renovadas, contratos rompidos ou empresas compradas de volta em função de insatisfação popular com as tarifas e o atendimento. Mais de 80% dos casos aconteceram de 2009 em diante.
Nailor Gato, da FNU, lembra do exemplo da Enel Goiás, eleita pior distribuidora do país nos últimos dois anos, depois de demitir mil funcionários – metade do quadro – da antiga Companhia Energética de Goiás (Celg). “Eles estão tentando devolver a concessão da para a União, porque não dão conta de cumprir as condições do contrato”, diz, mencionando, ainda, condições exaustivas e alto índice de acidentes de trabalho.
A Enel afirma que, em 2017, assumiu a companhia após décadas de subinvestimento e aporta 3,5 vezes mais do que a média do período anterior. Afirma, ainda, que tem gerado cada vez mais vagas e seus índices de qualidade alcançaram os melhores níveis da história da empresa. A concessionária acrescenta que em 2018 obteve os melhores resultados dos últimos quatro anos em segurança do trabalho.
Após o governador Ronaldo Caiado (DEM) pressionar pelo cancelamento da concessão, em 26 de agosto a empresa assinou um acordo comprometendo-se a melhorar os serviços no estado.
O Brasil de Fato não obteve resposta do governo federal quanto às críticas de abertura indiscriminada a estatais de outros países.
Edição: Rodrigo Chagas
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