LEI DA ANISTIA, 40 ANOS: DE PAUTA LIBERTÁRIA A PEDRA SOBRE A VERDADE

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LEI DA ANISTIA, 40 ANOS: DE PAUTA LIBERTÁRIA A PEDRA SOBRE A VERDADE

Por Anelize Moreira | Brasil de Fato | São Paulo (SP) – No dia 31 de agosto de 2016, a primeira mulher a ocupar a Presidência da República no Brasil, Dilma Rousseff (PT), atravessava o tapete vermelho do Palácio da Alvorada para deixar a residência oficial pela última vez, dois anos antes do previsto, vítima de um golpe travestido de impeachment.

“É o segundo golpe de estado que enfrento na vida”, afirmou Dilma em seu último discurso. “O primeiro, o golpe militar apoiado na truculência das armas, da repressão e tortura, me atingiu quando era uma jovem militante. O segundo, um golpe parlamentar que por meio de uma farsa jurídica me derruba do cargo pelo qual fui eleita pelo povo”.

Entre um golpe e outro, o Brasil viveu as dores da ditadura militar, da repressão política, dos assassinatos, desaparecimentos e torturas, mas também a alegria e a esperança que vieram com o processo de redemocratização do país, quando o regime autoritário começou a ruir.

Um dos marcos deste processo de retomada – que tornou possível à ex-guerrilheira Dilma Rousseff eleger-se presidente da República em 2010 – foi a Lei da Anistia, cuja promulgação completa exatos 40 anos neste 28 de agosto.

Sintomaticamente, foi na votação do impeachment de Dilma que o então deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) proferiu seu famoso discurso de exaltação ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ultra. “Pela família, contra o comunismo e pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, meu voto é sim” disse ele naquele 17 de abril de 2016, anunciado o novo período de trevas que se abateria sobre o país e que se aprofundou com sua eleição para presidente dois anos depois.

Nesse especial, ex-presos políticos, exilados, torturados e especialistas avaliam a importância do movimento pela Anistia, de 1975 a 1979, e o futuro dos direitos humanos no Brasil.

Eles enfatizam a importância da continuidade da luta pela paz, justiça e solidariedade, e destacam o acúmulo adquirido pelas forças democráticas aos longos desses anos de Brasil.

Mulheres iniciam a luta por anistia

A campanha pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita teve início em 1975, com o Movimento Feminino pela Anistia. Lideradas por Therezinha Zerbini, mães, irmãs, filhas, esposas e amigos de perseguidos políticos conseguiram 16 mil assinaturas pedindo liberdade aos presos políticos.

A campanha também reivindicava o retorno de exilados e banidos, revogação da Lei de Segurança Nacional e o esclarecimento das circunstâncias e dos responsáveis pelas mortes e desaparecimentos. Rapidamente ganhou a adesão de vários setores sociais, entre eles a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB,) as Comissões de Justiça e Paz, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Pressionado também por greves operárias e movimentos estudantis, o regime militar encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de Lei Anistia, que foi aprovada e promulgada pelo general João Baptista Figueiredo, último presidente do regime militar, em 28 de agosto de 1979. Porém, além de libertar presos políticos e trazer de volta os exilados – entre eles, lideranças como Miguel Arraes e Leonel Brizola – a lei elaborada pelo governo veio acrescida de um parágrafo que anistiava também os “crimes conexos”, com o que os torturadores, sequestradores e assassinos de farda jamais foram julgados. Ficaram impunes.

“Por que há tanto silêncio? Porque não houve justiça. Os torturadores foram anistiados, continuam impunes e continuam nos seus postos dentro do Exército e sendo privilegiados”, diz Rita Sipahi, ex-presa política e ex-membro da Comissão de Anistia. Para Marijane Lisboa, ex-presa política, é lamentável que tenham se passado 40 anos sem apuração da verdade ou condenação dos culpados. “Fomos torturadas com choques elétricos, era o mais comum, às vezes ferir seios, unhas, espancamento, fome e frio”, lembra.

“O crime de tortura não é um crime político, mas um crime dos mais graves, que usou os recursos do Estado contra os brasileiros quando, pela Constituição, o Estado deveria garantir a segurança de seus cidadãos. Foi uma típica saída que é interpretar dessa maneira”.

Exilada no Chile, México e Alemanha entre nos anos 1971 a 1979, após ser sequestrada, presa e tortura pelo regime militar, com a Lei da Anistia, Marijane Vieira Lisboa pôde retornar ao Brasil. “Foi ótimo reencontrar família e amigos, mas ao mesmo tempo o Brasil tinha mudado muito, certamente para pior. Para mim foi evidente o aumento da miséria e a desigualdade social junto com a riqueza de alguns setores.”

Ela encontrou dificuldades nos oito anos que viveu no exílio. No Chile, não conseguia se manter, faltava alimento, o básico. Entrou na universidade, mas teve que

interromper os estudos quando ocorreu o golpe contra o presidente socialista Salvador Allende (setembro de 1973) e recomeçou de novo em outro lugar. Foi para Alemanha grávida, já com marido Luís Travassos, que havia sido presidente da União Nacional do Estudantes (UNE) e também fora preso e banido no Brasil.

“O governo alemão nos aceitou com muita má vontade de início, não queria nos dar asilo, alegando que éramos terroristas, porque eles se baseavam nas informações da polícia brasileira e quem garantiu a nossa presença lá foi a Anistia Internacional”.

Exílio, torturas, sequestros

Marijane e a filha que nasceu no exílio Alemanha

Aos 72 anos, ela relembra do terror vivido pelos movimentos nas mãos dos militares, com prisões,

sequestros e assassinatos. “Nessa fase dos sequestros a gente temia que nos matassem e depois dissessem que não sabiam o que tinha acontecido conosco. Nós fomos de fato sequestradas, retiradas do carro do nosso advogado, me vendaram e nos levaram para Polícia Estadual do Rio de Janeiro, onde aconteciam prisões e torturas”.

Em uma carta enviada à França, Marijane e as outras presas denunciaram as torturas de dentro da prisão, quando o general Emílio Garrastazu Médici, presidente da época (1969-1974), declarou que não havia tortura no Brasil. “Houve um momento que sentimos que corríamos risco. Nós escrevemos uma carta e enviamos por meio de um jornalista francês que tinha contato com o nosso advogado, disfarçada dentro de um maço de cigarro. Na carta denunciamos as torturas que fomos submetidas e assinamos. Aí ficamos preocupadas do que poderia acontecer quando eles descobrissem. Estávamos presas na Marinha, mas não aconteceu nada”.

A denúncia de cerca de 20 presas foi publicada em jornais franceses. Foi a primeira denúncia de tortura feita de dentro da cadeia.

Aos 81 anos Rita Sipahi lembra das marcas da tortura. Quando foi presa, em 1971, tinha 33 anos e dois filhos pequenos, de 4 e 5 anos. “Fui torturada no pau de arara, com choques elétricos na vagina e outras formas de tortura utilizadas na época. A gente precisa falar disso, pois essas torturas deixam marcas nas pessoas e pretendem destruir a dignidade das pessoas. Ele não queria só que a gente falasse [o que sabíamos], mas o objetivo do torturador é a destruição. Se não consegue um jeito de tratar isso, vai te acompanhar e te fragilizar para vida toda”.

Rita cita uma passagem de um livro do psicanalista Juarez Freire, em que ele descreve o momento da tortura como se fosse um prédio caindo sobre a cabeça, e a pessoa tentando amparar os tijolos. Segundo ela, o autor descreveu exatamente o que ela sentia e relata uma das particularidades da violência do Estado contra as mulheres. “Na tortura com a mulher existe um acréscimo, que é atacar por meio de palavras. Eles acham que eu tinha cara de santa, mas me chamavam o tempo todo de prostituta e tentavam me desqualificar. E tinha uma cara que irritava eles, pois eu olhava nos olhos também, e eles não suportavam olhar nos olhos, mandavam parar de olhar”.

Impunidade

Após 40 anos, especialista avaliam que a lei de anistia precisa ser reavaliada e interpretada devidamente, levando em conta os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. O debate já motivou iniciativas concretas, como uma ação da OAB junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, pedindo a revisão da lei, de forma a retirar de seu texto o perdão aos “crimes conexos”. Por 7 votos a 2, o STF decidiu não mexer em nada, sob o argumento de que não caberia ao Poder

Judiciário “rever o acordo político feito na transição do regime militar para a democracia”.

Porém a batalha continua. Para Rogério Sotilli, diretor do Instituto Vladimir Herzog, a interpretação de que a lei pode proteger torturadores é incompatível com os tratados internacionais. As normas dizem que todo crime de lesa humanidade não é político, e que crime de tortura não é anistiável nem prescreve. “A interpretação dada em 2010 pelo STF passa a valer com amparo legal e é uma interpretação covarde. O Brasil não enfrenta os problemas e não responsabiliza pessoas e instituições pelas violências sofridas no país. Isso aconteceu com a escravidão, com genocídios indígenas, hoje com a juventude negra, com a ditadura de Vargas e isso aconteceu com a ditadura civil militar de 1964. Na medida que o Brasil não responsabiliza aqueles que cometeram atos criminosos, o que ele sinaliza para o futuro é que tudo pode”.

Sotilli explica porque esse entendimento é grave para o país hoje.
“Ao fazer isso, ele permite que aconteça exatamente o que está acontecendo no Brasil. As pessoas não levam a sério a violência. Veja bem. Um presidente da República foi eleito defendendo torturador, a ditadura militar, rasgando a Constituição, a favor da violência contra os pobres, movimentos sociais, ou contra o que ele chama de ‘comunista’. Há uma naturalização da violência, tudo pode isso e não podemos tolerar”.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou os casos de torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres durante a ditadura, e identificou estruturas, locais, instituições e circunstâncias nas quais esses crimes foram cometidos. A Comissão funcionou de 2012 a 2014. Uma particularidade em relação a outros países é que foi instituída por projeto de lei pelo ex-presidente Lula e votada no Congresso Nacional durante o governo Dilma.

“Houve uma prática reiterada de violações aos direitos humanos pela ditadura brasileira que funcionou de 1964 a 1985. E se constituiu uma prática de Estado, ou seja, não foi uma ação isolada de indivíduos, mas uma política comandada pelos presidentes da República de crimes contra humanidade. Por isso, insuscetível de anistia e que, por força da ausência de punição, fez com que muitas dessas práticas, em especial a tortura, tivesse continuidade no Brasil até hoje”, afirma Pedro Dallari, professor de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP). Ele atuou como coordenador e relator da CNV entre 2013 e 2014.

Para Rita Sipahi é preciso dar sequência à justiça de transição e defender a verdade, justiça e memória, pois há um acúmulo das lutas nos últimos períodos.

“Os militares usaram uma estratégia de colocar uma pedra em cima dos crimes que cometeram com a Lei da Anistia. O medo naquela época era grande e agora eu sinto que esse medo voltou um pouco. Quando as pessoas não estão indo para rua se manifestar porque podem perder o emprego, o medo está latente. Por que Bolsonaro não é tão afrontado? Porque ele é presidente do país. Há medo”.

Precedente

No último dia 14 de agosto, o sargento reformado Antônio Waneir Pinheiro Lima, conhecido como “Camarão”, virou réu na Justiça por sequestro, cárcere privado e estupro.

Os crimes foram cometidos contra a historiadora Inês Etienne Romeu, única sobrevivente na “Casa da Morte”, em Petrópolis, Região Serrana do Rio. O local era um centro de tortura montado pelo Centro de Informações do Exército durante o regime militar. Pelo menos 18 pessoas foram assassinadas na Casa da Morte e seus corpos seguem desaparecidos, segundo o Ministério Público Federal. Etienne morreu em 2015.

Esse foi o primeiro processo criminal de estupro aberto contra um militar, relacionado aos crimes da ditadura. De acordo com o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) também é a primeira vez que a segunda instância da Justiça brasileira entende que essesnão são protegidos pela Lei da Anistia. Para a procuradora regional da República e ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, a decisão representa um grande avanço.

“[O tribunal não fez uso] da Lei de Anistia, nem da norma que trata da prescrição, aplicando, finalmente, conceitos de crimes contra a humanidade”, afirma. Segundo Eugênia, a decisão pode criar um precedente, principalmente em casos de estupro, que eram recorrentes. “Todas as presas ali, além da tortura, além de tudo, sofreram abuso sexual. Então isso pode desencadear uma série de ações. O difícil é identificar o autor, porque eles trabalhavam encapuzados. O próprio exército não divulga a lista das pessoas que estavam lá. Tudo isso também envolve um sofrimento extra para essas mulheres, para essas pessoas”, explica a procuradora.

Dallari também considera importante a medida tomada pelo TRF-2. “Desejo que, com essa nova decisão e com outras que podem vir a ser tomadas, o judiciário possa consolidar o entendimento a favor da possibilidade de julgamento dos responsáveis por essas graves violações de direitos humanos”, reitera.

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