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O morador Wagner Rodolfo esquenta água em uma das cozinhas coletivas do bloco F / Marcelo Cruz
Abandono e precariedade tomam conta do Crusp, que abriga 2 mil alunos e está há mais de 20 anos sem reformas
Marcos Hermanson | Brasil de Fato | São Paulo (SP) – Estamos em uma das cozinhas coletivas do bloco B do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp). O cheiro de gás é forte. Uma fita plástica preta e amarela remenda precariamente a tubulação de gás que fica sob um fogareiro enferrujado. Na parede, um aviso:
ATENÇÃO USUÁRIOS PERIGO! NÃO ABRA O REGISTRO: o encanamento de gás está com um vazamento, pode ocorrer risco de incêndio ou explosão.
A cena ilustra bem as condições sob as quais vivem os quase 2 mil moradores da residência estudantil da Cidade Universitária, maior campus da USP, na Zona Oeste da cidade.
Há 32 lavadoras de roupa destinadas ao uso coletivo. Nenhuma funciona. Em pelos menos um bloco inteiro, os alunos passaram o inverno tomando banho gelado porque o aquecimento de água também está com problemas. Na maioria das cozinhas coletivas faltam torneiras, enquanto fogões e fogareiros não servem para preparar uma refeição simples.
As Infiltrações e o mofo dominam boa parte das paredes dos corredores, às vezes entrando em contato com fios expostos ou caixas de luz. Como consequência da entrada da água, o teto tem buracos e, no período de chuvas, a água entra nos apartamentos.
Com os serviços coletivos em estado de falência, muitos moradores infringem as regras da administração do Crusp e instalam chuveiros elétricos, fogões e lavadoras domésticas em seus apartamentos.
O problema é que os prédios não foram desenhados para comportar uma demanda de energia dessa magnitude, o que gera um risco considerável de incêndios por curto-circuito.
Vai explodir
Questionada se teria medo de alguma catástrofe, Janaína Rodrigues, diretora da Associação de Moradores (AmorCrusp), diz ter “pavor e certeza”.
“Em algum momento vai acontecer alguma coisa drástica. Em algum momento aquele pingo de água vai cair em uma caixa de luz que já está com fios expostos e vai explodir”, completa ela.
Os funcionários da manutenção são apenas seis. Eles reclamam da escassez de material e afirmam que suas demandas são ignoradas pela administração predial, de responsabilidade da Superintendência de Assistência Social da USP (SAS).
“Uma hora vai acontecer uma desgraça”, resume um deles, falando sobre os entulhos que se acumulam nos corredores e podem dificultar a fuga dos moradores no caso de um incêndio. Em outubro de 2017, um apartamento do Bloco G pegou fogo e até hoje as causas não foram esclarecidas.
“O Crusp é um centro residencial dentro da USP feito para estudantes precarizados, com situação de vulnerabilidade socioeconômica, em busca de permanência estudantil, mas a precarização está afetando a vida das pessoas no ponto delas decidirem que é melhor não ter a universidade do que viver da maneira como estão vivendo”, afirma Janaína.
Para ela, o que ocorre ali sequer pode ser classificado como descaso ou abandono. Seria uma “política efetiva” para que os estudantes deixem a universidade. Questionada pela reportagem, a SAS não quis revelar o orçamento aplicado em obras de manutenção ou reforma, mas diz que gasta “adequadamente” a verba.
“Essa situação de precariedade vai enlouquecendo as pessoas”
As condições da infraestrutura e o isolamento em relação à cidade criam um clima favorável ao adoecimento psicológico, segundo estudantes ouvidos pelo Brasil de Fato.
Wagner Rodolfo, morador do bloco F, relembra que, em julho, um morador tentou o suicídio pulando do sexto andar. “Eu acho engraçado que aqui no Crusp tenha uma clínica odontológica, mas não tenha uma clínica psiquiátrica. Já ouvi, do apartamento, pessoas gritando que não aguentam mais. Tem casos de alunos que surtam e ficam vagando pelos corredores”, conta ele.
Wagner e Ticiana Oliveira, moradora do bloco G, não se conhecem, mas ela diz algo muito semelhante: “Se você vai no posto de saúde aqui perto, os grupos de atenção psiquiátrica são todos de moradores do Crusp. Aqui perto fica a Faculdade de Psicologia da USP. Por que cargas d’água eles ainda não têm um convênio para fazer oficinas, laboratórios, terapias para ajudar a saúde mental dos graduandos?”, pergunta ela. “A gente sabe de vários casos de suicídios aqui: dentro dos laboratórios, de cima dos prédios… Pouquíssimos pós-graduandos ainda não fizeram uso de remédio tarja preta”, completa Ticiana, que é doutoranda em Integração da América Latina.
“A gente tem pessoas com tratamento psiquiátrico aos montes, inclusive porque essa situação de precariedade vai enlouquecendo as pessoas”, resume Janaína, do AmorCrusp.
História e importância
A construção do condomínio que viria a se transformar no Crusp foi finalizada no ano de 1963. Os prédios serviram como Vila Olímpica dos Jogos Pan-Americanos realizados em São Paulo no mesmo ano. A ideia era entregar a vila aos estudantes após os jogos, mas isso só aconteceria a partir de 1964, quando um grupo de 13 alunos ocupou as dependências do conjunto.
Em 1968, após a promulgação do AI-5 e o recrudescimento da ditadura, os militares invadiram as moradias e expulsaram os estudantes. O conjunto só voltaria a ser reocupado dez anos depois, em 1979, com a abertura política.
Hoje o Crusp conta com oito blocos – um deles conquistado após uma greve estudantil, em 2007 – e 1577 moradores, sem contar com os que vivem ali “clandestinamente”. A renda média dos moradores é de meio a um salário mínimo, e eles permanecem ali por aproximadamente seis anos, segundo a SAS.
A despeito dos problemas, os moradores entrevistados pelo Brasil de Fatosão unânimes em afirmar a importância do Crusp.
“Seria impossível. Eu falo por mim. Se eu não estivesse morando aqui, eu não teria a menor condição de fazer um doutorado”, diz Ticiana.
Sentado ao seu lado está Rogério Mauê. Ele é mestrando em arquitetura e morador do alojamento temporário do mesmo bloco. Natural do Pará, diz que o Crusp “tem vários problemas, que devem ser solucionados, mas têm alunos aqui que só podem fazer pesquisa ou estudar tendo essa moradia. É a forma das pessoas alcançarem um diploma”.
Aluno de Educação Física e morador do bloco F, Pedro Rodrigues conta que, antes de viver no Crusp, ele gastava em média três ou quatro horas no transporte público todos os dias: “Era bem desgastante acordar cinco da manhã, chegar na aula às 8h, ficar aqui até 17h, jantar e ir embora. Depois chegar em casa às 21h, fazer as lições, ler os textos, se preparar e dormir cedo porque cinco horas você tá de pé de novo”.
Reformas “em breve”
O Brasil de Fato solicitou entrevista com Fábio Guerrini, professor de engenharia e superintendente da SAS. O objetivo era questioná-lo sobre o abandono da moradia estudantil e saber se existem reformas planejadas para os blocos.
A SAS respondeu que não seria possível marcar o encontro pois o orgão “ainda está em tratativas com a reitoria” da universidade. Disse também que os problemas estruturais são causados pela “ação do tempo” e por “atos de vandalismo”, e que as últimas reformas ocorreram há mais de 20 anos.
A Superintendência informa que uma reforma está programada para “breve”, e que esta deve priorizar ações contra “infiltrações nas paredes dos apartamentos, adequações da rede elétrica e instalação de cabeamento para sinal de wi-fi”.
Edição: João Paulo Soares
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