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Posição do presidente não tem embasamento jurídico e já constava no programa de governo apresentado na campanha / Sergio Carvalho/MTE
Ao contrário do que sugeriu o presidente, trabalho escravo e em condições análogas à escravidão são o mesmo crime
Rafael Tatemoto | Brasil de Fato | Brasília (DF) – O presidente Jair Bolsonaro (PSL) criticou esta semana a Emenda Constitucional 81, aprovada em 2014, que permite a expropriação de imóveis nos quais haja flagrante de trabalho escravo.
O teor da crítica do capitão reformado, que já constava no programa de governo apresentado por sua candidatura em 2018, se baseou em uma distinção conceitual inexistente no campo jurídico.
Segundo ele, haveria uma “linha tênue” entre trabalho escravo e trabalho em condição análoga à escravidão. Essa indefinição, em sua opinião, geraria insegurança a produtores rurais: “O trabalhador, o empregador, tem que ter essa garantia. Quem tem coragem de investir num país como esse?”.
Ao se dirigir ao presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Martins, deixou explícita sua confusão, dizendo que colegas do magistrado “entendem que o trabalho análogo à escravidão também é escravo. E pau neles [produtores rurais]”.
Sinônimos
Segundo a jurista e pesquisadora Andrea Gondim, autora da dissertação “Trabalho em condição análoga à de escravo no meio urbano”, os dois termos, na verdade, “falam da mesma figura”. Ou seja, são sinônimos para descrever o que alguns estudiosos chamam de “escravidão contemporânea”.
“São utilizados vários termos, mas o que eles querem dizer é que ainda hoje acontece de pessoas serem submetidas a situações similares à escravidão. Quando a gente utiliza o uso reduzido do termo [‘trabalho escravo’], é para sensibilizar à sociedade exatamente para isso”, afirma.
De acordo com Gondim, “do ponto de vista técnico-jurídico” o termo mais apropriado é “trabalho em condição análoga à de escravo”, já que houve Abolição formal do escravagismo em 1888.
Penalidade
A Emenda citada pelo presidente modificou o artigo 243 da Constituição, que já previa a expropriação – perda de propriedade sem indenização – para o caso de tráfico de entorpecentes.
“O texto dispõe que as propriedades podem ser expropriadas quando flagrada a ‘exploração do trabalho escravo na forma da lei’. Ou seja, nada impede que se utilize [para a definição] o artigo 149 do Código Penal para a expropriação. Quando se fala em trabalho escravo no contexto atual se está falando do trabalho descrito no Código Penal”, afirma Gondim.
O Código Penal, assim, dá uma definição do que se pode considerar o trabalho escravo contemporâneo no Brasil: “trabalhos forçados”, “jornada exaustiva”, “condições degradantes de trabalho” e restrição, “por qualquer meio, [de] sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador”.
De acordo com o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, mantido pelo Ministério Público do Trabalho em cooperação com a Organização Internacional do Trabalho, no período de 2003 a 2018, ocorreram 45.028 resgates de pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão no país.
O frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das entidades que sempre atuou na notificação de suspeitas de trabalho escravo, explica que os focos de trabalho escravo variam aos longos dos anos, passando de setores como madeireiras na Amazônia, na produção de carvão, nos canaviais e, mais recentemente, em áreas urbanas como a indústria têxtil.
O religioso afirma que nos últimos três anos as ocorrências têm diminuído. “Uma característica permanente é invisibilidade. A suspeita é que haja uma subnotificação [nos últimos anos] por vários motivos. E também que tenha havido mudanças reais após 25 anos de fiscalização”, argumenta.
Um dos possíveis fatores mencionados por Plassat é a piora no mercado de trabalho, que teria levado a um temor maior para a realização de denúncias por parte dos trabalhadores. Em 2018, fiscais identificaram cerca de 1700 situações de trabalho escravo, resgatando 1133 pessoas.
:: Combate ao trabalho escravo sofre corte orçamentário no Brasil ::
Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), 8 mil auditores fiscais do trabalho seriam necessários para cobrir todo o território nacional. Atualmente, o Brasil tem 2,2 mil profissionais contratados.
O ritmo das operações dos auditores fiscais vai na contramão da urgência da erradicação do trabalho escravo. Informações disponibilizadas em agosto do ano passado pelo extinto Ministério do Trabalho mostraram que o número de fiscalizações está em queda.
No ano de 2017, por exemplo, foram realizadas 88 operações de fiscalização, resultado do contingenciamento de 52,2% no plano orçamentário para esse fim. Em 2016, foram 115.
Edição: Rodrigo Chagas
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