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No dia 6 de julho, um entregador da empresa Rappi, Thiago de Jesus Dias, de 33 anos, faleceu após passar mal durante uma entrega em SP / Jewel Samad / AFP
Novas relações de trabalho têm com consequência a baixa notificação de acidentes por parte de trabalhadores informais
Rute Pina – Brasil de Fato | São Paulo (SP) – Uma semana antes do seu aniversário de 19 anos, a pernambucana Polliana Késsia da Silva Porto sofreu um acidente de trabalho que provocou queimaduras em 55% de seu corpo. Isso porque a lanchonete em que ela trabalhava usava álcool de posto em vez de álcool em gel nos fogareiros de metal, para baratear as despesas.
“Era meu primeiro emprego. Eu fui acender o rechauds porque vendia muita sopa e, quando fui pegar o produto e acender o fogo, um bafo quente explodiu cinco litros de álcool”, conta ela, que sofreu o acidente em 2005. Polliana passou aproximadamente duas semanas em coma induzido e por diversas cirurgias para tratar as queimaduras de 2º e 3º grau no rosto, braço, tórax e barriga, pernas.
“Esteticamente, fiquei deformada. Tive muitos problemas psicológicos e crises”, diz ela. “Foi um choque. Assim que acordei da UTI, falaram que eu sofri um pequeno acidente. Mas você não sabe o foco do acidente. Mas realmente foi algo que mudou a minha vida e até hoje mexe comigo.”
O relato de Polliana está em um dos vídeos que integram a campanha de prevenção a acidentes de trabalho em suas redes sociais promovida pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) em suas redes sociais este mês.
Chamada “25 motivos para prevenir acidentes de trabalho: essa história não pode se repetir”, a ação é uma iniciativa do Programa Trabalho Seguroda Justiça do Trabalho. A campanha, que se estenderá até o fim do mês, marca o Dia Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho, no dia 27 de julho.
Mais de 549 mil pessoas se acidentaram no trabalho e registraram os acidentes por meio da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), segundo os dados de 2017 da Secretaria de Previdência do Ministério da Economia, os índices oficiais mais recentes.
O número é 6,59% menor do que o registrado em 2016, quando ocorreram mais de 585 mil acidentes no país. Outras 98,7 mil pessoas também sofreram acidentes, mas as empresas não abriram a CAT.
Mas, segundo Ministério Público do Trabalho, o número de mortes causadas por acidentes de trabalho voltou a crescer, em 2018, pela primeira vez em cinco anos. Foram 2022 empregados formais ou autônomos registrados no sistema da Previdência Social que morreram por conta de acidentes de trabalho, 30 a mais que no ano anterior.
No entanto, o médico René Mendes, diretor científico da Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (ABRASTT) e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), relaciona essa pequena diminuição nos números com as mudanças no mercado de trabalho.
Ele afirma que empresas como a Uber e Rappi diluem as caracterização dos trabalhadores e, portanto, as estatísticas são relativizadas. “A empresa, nesse caso, é quase uma enganação porque o esquema é de ‘salve-se quem puder e vire-se cada um como pode'”, critica.
Também o juiz gestor nacional do Programa Trabalho Seguro, André Machado Cavalcanti, relaciona o aumento da informalidade com uma diminuição no número de notificações de acidentes de trabalho.
“Se considerarmos que há no Brasil milhares de trabalhadores que trabalham na informalidade sem registro em carteira, que se acidentam e, por serem trabalhadores informais, não informam à previdência e não usufruem dos benefícios a que tem direito, esse número sobre acidentes de trabalho não reflete a realidade”, comenta.
No dia 6 de julho, o entregador do Rappi Thiago de Jesus Dias, de 33 anos, faleceu após passar mal enquanto fazia a entrega em um prédio residencial de Perdizes, na zona oeste da capital paulista. A advogada Ana Luísa Ferreira Pinto, que o socorreu, recebeu a orientação da empresa para avisar os próximos clientes que não receberiam seus produtos no horário previsto.
“Esse caso é uma amostra, eu diria, ainda muito isolada porque o fenômeno é muito grave. As chamadas novas morfologias do trabalho, com a uberização da economia e com essas atividades hoje, é muito marcante e vai diluir e deixar invisível as gravidades do problema. As relações de trabalho vêm se modificando. E toda a estruturação da lógica do trabalho vem mudando. E todas essas iniciativas estão na contramão da lógica da saúde e da segurança do trabalho”, aponta o especialista.
Mendes afirma que a Reforma Trabalhista e a possível aprovação da Reforma da Previdência podem agravar esse cenário.
“Os que estão morrendo hoje, todos os dias, ou são terceirizados, que é a expressão mais forte da precarização do trabalho, ou autônomos — e essa palavra é tão abrangente que esconde atrás de si essa precarização extrema do projeto neoliberal adotado no Brasil”, diz.
Desde 1972, empresas com mais de 100 funcionários são obrigadas a adotar medidas de segurança em medicina do trabalho, segundo determinação do extinto Ministério do Trabalho.
O governo de Jair Bolsonaro prometeu a revisão de 9 das 37 normas regulamentadoras. Conhecidas como NRs, elas reúnem 6,8 mil regras distintas sobre segurança e medicina do trabalho. O Congresso não precisa dar aval para alterações nessas regras e, por isso, o governo aguarda a tramitação da reforma da Previdência para enviar a proposta à Casa.
Para o juiz André Machado Cavalcanti, ao mesmo tempo em que o país passa por um aumento da precarização trabalhista, há um desmonte das políticas e equipes voltadas ao combate ao acidente de trabalho.
“O antigo Ministério do Trabalho, hoje Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, vem sofrendo cortes drásticos em sua estrutura, os auditores do trabalho – conhecidos como fiscais de trabalho– não tem sido repostos à medida em que se aposentam, muitas vagas tem ficado abertas e esse contingente tem diminuído. À medida em que o país, mesmo com a economia estagnada, têm um crescente de pessoas em atividade, ainda que na informalidade, paradoxalmente, temos uma diminuição nas medidas do Estado”, lamenta.
Campanha
Os vídeos com relatos reais de trabalhadores que integram a campanha “Essa história não pode se repetir” é chamar a atenção da sociedade para a necessidade da prevenção dos acidentes de trabalho. As histórias serão contadas em vídeos curtos e serão divulgadas durante o mês nas páginas oficiais dos tribunais e do CSJT no Facebook.
Cavalcanti considera que a campanha é importante para a conscientização da população como um todo – de trabalhadores a empregadores –, “sobre como acontece e como pode ser evitado, sobre as consequências que têm, porque repercute na Previdência Social”.
Por sua vez, Mendes pontua a importância de campanhas institucionais contra os acidentes de trabalho, mas critica a abordagem.
“Eu digo isso com tristeza. Elas são superficiais e não vão a origem às causas. Sem dúvida, os acidentes de trabalho não são simplesmente por questões técnicas, mas por uma lógica da exploração dos trabalho e trabalhadores”, diz o médico.
Edição: Luiza Mançano