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Moro entre Carlos Fernando (esq.) e Dallagnol, que se comportava como contínuo do juiz
Blog do Reinaldo Azevedo – Reportagem publicada pela Folha nesta quarta, em parceria com o site The Intercept Brasil, evidencia o desrespeito à já ruim lei das delações premiadas, a 12.850, e demonstra, de maneira cabal e insofismável, que o então juiz Sérgio Moro tinha o comando da Lava Jato. Diálogos inéditos travados por procuradores da operação revelam que a agressão à ordem legal era consciente, determinada e organizada. E disso tinham plena ciência procuradores e juiz….
Reportagem publicada pela Folha nesta quarta, em parceria com o site The Intercept Brasil, evidencia o desrespeito à já ruim lei das delações premiadas, a 12.850, e demonstra, de maneira cabal e insofismável, que o então juiz Sérgio Moro tinha o comando da Lava Jato. Diálogos inéditos travados por procuradores da operação revelam que a agressão à ordem legal era consciente, determinada e organizada. E disso tinham plena ciência procuradores e juiz. Carlos Fernando, parceiro de Deltan Dallagnol, chegou a classificar os acordos de delação, sob a influência de Moro, de “um caos”, que procurava jogar para a plateia. Deltan respondeu que eles precisavam da opinião pública e chegou a indagar, como quem apela ao absurdo, se o colega pretendia enfrentar a discordância de Moro. E deixou claro: “Tem que falar com ele”. Vamos ver.
O MAL INTRÍNSECO DAS DELAÇÕES
Há muita coisa na Lei 12.850 de que discordo. A delação premiada, por si, já é algo que tem de ser visto com cautela. Como demonstra a miséria política a que fomos conduzidos, ainda que todos os agentes públicos façam a coisa certa, o país pode ficar refém de dois tipos muito perigosos para a democracia:
1) o bandido contumaz – ele pode preparar uma plataforma de crimes futuros ao admitir ou delatar os pretéritos, atuando, nesse processo, como um selecionador de alvos. Assim, busca se livrar da pena por aquilo que fez, precavendo-se já de riscos por aquilo que vai fazer:
2) o criminoso ocasional – este, assustado, entrega-se à condução daqueles que comandam o processo. Acabará dizendo o que querem que diga. Os alvos que forem do interesse dos que escrevem a narrativa serão também os seus se for o preço a pagar para se livrar de uma pena severa.
Há uma questão de fundo que insistimos em não ver, obcecados pelo combate à corrupção: nenhum modelo
concede tanto poder aos corruptos como a delação premiada. Mais: não há outro padrão que torne tão preguiçoso o Estado investigador. O regime de delações, associado à barganha, que pretendem introduzir em nosso sistema penal, cria uma espécie de repartição burocrática de administração de benefícios a espertalhões.
A ÚNICA SALVAGUARDA SERIA O JUIZ
A lei das delações tem uma só fronteira de defesa do interesse público numa arquitetura que, à diferença do que dizem, acaba conferindo poder aos bandidos: a independência do juiz. Se cabe à polícia ou ao Ministério Público fazer os acordos de delação, negociando benefícios com base na qualidade da colaboração do delator, o exame técnico do conjunto tem de ser feito com independência e imparcialidade pelo juiz. Até porque lhe cabe examinar também se os órgãos do Estado que encetam as negociações não incorreram eles próprios em ilegalidades em razão de pressões políticas, corporativas ou outras.
Essa garantia, já modesta, se encontra nos Parágrafos 6º, 7º, 8º do Artigo 4º da Lei 12.850. Lá está escrito:
§ 6º O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor;
7º Realizado o acordo na forma do § 6º, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor;
8º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.
A INTERFERÊNCIA
Diálogos entre os procuradores Deltan Dallagnol e Carlos Fernando, travados em 2015, demonstram que Sergio Moro interferiu em cada passo, por exemplo, das tratativas para a delação de diretores da construtora Camargo Corrêa, exigindo até a imposição de pena mínima para que a negociação pudesse prosperar. A interferência era tal que Carlos Fernando, à frente das tratativas, esboça uma insurgência, mas eis que intervém, então, Deltan para garantir que se cumprisse a vontade de Moro. Robin jamais contraria Batman.
No dia 24 de fevereiro de 2015, Carlos Fernando reclama, conversando com o coordenador da força-tarefa (conforme o original):
“O procedimento de delação virou um caos. Creio que se a sua divisão de serviço pressupõe que eu e Januário [Paludo] estamos encarregados dos acordos, eles devem ser tratados por nós. Você é o Promotor natural e pode discordar, e eu sempre ouço todos, mas o que vejo agora é um tipo de barganha onde se quer jogar para a platéia, dobrar demasiado o colaborador, submeter o advogado, sem realmente ir em frente. Não sei fazer negociação como se fosse um turco. Isso até é contrário à boa-fé que entendo um negociador deve ter. E é bom lembrar que bons resultados para os advogados são importantes para que sejam trazidos novos colaboradores. Eu desejo que sejam estabelecidas pautas razoáveis, e que eu e Januário possamos trabalhar com mais liberdade.”
Nesse mesmo dia, Deltan responde, sempre de olho na opinião pública e na administração da sua imagem. Afirma ao colega:
“Os acordos são sensíveis por diversas razões. Uma é opinião pública e precisamos dela meu amigo. Outra é o fato de que nossa e minha reputação estão ligados ao caso. Estamos numa era tecnológica e como promotores não
ganhamos mas dependemos de nossas reputações.”
VAI ENCARAR?
Carlos Fernando manteve o inconformismo, e Deltan respondeu no começo da madrugada do dia 25:
“Carlos Vc quer fazer os acordos da Camargo mesmo com pena de que o Moro discorde? Acho perigoso pro relacionamento fazer sem ir FALAR com ele, o que não significa que seguiremos. Podemos até fazer fora do que ele colocou (quer que todos tenham pena de prisão de um ano), mas tem que falar com ele sob pena de ele dizer que ignoramos o que ele disse. Vc pode até dizer que ouve e considera , mas conveniência é nossa e ele fica à vontade pra não homologar, se quiser chegar a esse ponto. Minha sugestão é apenas falar.”
Agressão determinada, deliberada e contumaz à ordem legal.
E agora?
A propósito: o ministro Roberto Barroso, do Supremo, que inventou um tal Instituto de Diálogos Constitucionais (IDCon), que vem, a ser o próprio Barroso — é um caso único de “Homem Instituto” —, não vai chamar Moro e Deltan para dar uma aula sobre delação e respeito à ordem legal? Seguido de um coquetel. Em “traje casual”, é claro.
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