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O presidente da ANPR (Associação dos Procuradores da República), Fábio George Cruz da Nóbrega – Pedro Ladeira/Folhapress
Folha Uol | Wálter Nunes – Presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), o procurador Fábio George Cruz da Nóbrega, 48, diz que a recém-criada lei contra o abuso de autoridade irá inibir os membros do Ministério Público e outros operadores da Justiça em suas atividades de combate ao crime.
“Existem vários tipos penais [na nova lei], crimes que estão ali incluídos, com uma redação muito aberta, vaga, subjetiva. Isso traz uma intranquilidade muito grande”, afirma.
A ANPR, ao lado de associações de magistrados, vai recorrer ao STF (Supremo Tribunal Federal) contra alguns pontos da lei, aprovada agora e que passa a valer em janeiro de 2020.
Sobre a indicação e aprovação de Augusto Aras como novo procurador-geral da República, o presidente da ANPR diz que o novo chefe do Ministério Público Federal precisa expor ideias e projetos a partir de agora, já que não participou da eleição para a lista tríplice da categoria, ignorada depois pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Procuradores e juízes dizem que vão ao STF contra a lei do abuso de autoridade. Por que essa lei é tão combatida por vocês? Existem vários tipos penais, crimes que estão ali incluídos, com uma redação muito aberta, vaga, subjetiva. Isso traz uma intranquilidade muito grande na medida em que questões que eram resolvidas no próprio sistema de Justiça através de recursos. Nossa instituição entrava com uma ação e o Judiciário compreendia. Traz uma insegurança jurídica muito grande.
Existem outros artigos [da lei] mais dirigidos à magistratura, como o de decretar prisão fora das hipóteses legais. Algo sujeito a uma interpretação, sujeito a uma discussão, a um posicionamento diverso.
Na medida em que essas questões, que são normais da conformação do sistema judicial, permitem divergência, permitem recursos, são resolvidas ali no sistema de Justiça, elas passam a caracterizar crime, isso traz uma insegurança jurídica na atuação de policiais, membros do Ministério Público, magistrados, particularmente no combate à corrupção e o crime organizado.
Então isso fere, ao nosso ver, um dos princípios fundamentais, que é o princípio da legalidade. É preciso que a definição de crime seja a mais fechada, a mais clara, indiscutível possível para que as pessoas saibam o que podem fazer e o que não podem fazer.
Então a ideia é justamente questionar no STF esses artigos de lei que em nada colaboram para o trabalho de aperfeiçoamento das instituições no cumprimento das suas missões.
Quais os pontos que mais incomodam? Eu citei um exemplo, o artigo 30 incomoda muito particularmente ao Ministério Público e a outras instituições como a polícia, que tem o trabalho de realizar a investigação.
Diz assim: dar início à persecução penal, civil ou administrativa, dar início à investigação, ou ao processo penal, civil ou administrativo, sem justa causa fundamentada. Bom, muitas vezes a gente entende que há indícios suficientes para que a ação seja proposta, e o juiz discorda, e nós recorremos e conseguimos ganhar essa causa em grau de recurso. Às vezes o juiz discorda razoavelmente e nós recorremos razoavelmente e essa decisão é mantida.
Esse artigo incomoda demais porque põe um risco muito grande na atribuição normal de investigar ou de acusar pessoas, tanto na seara penal, como civil, como administrativa, já que esse conceito de justa causa fundamentada, que é um conceito fluido, aberto e subjetivo, que caracterizará, se não vier ser reconhecido, um crime.
Existe um outro artigo que importa mais à magistratura, que é o artigo nono. Decretar medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. É muito comum que o juiz decrete a prisão, e o preso, através do seu advogado, impetre um habeas corpus. [O pedido] muitas vezes não é concedido na segunda instância, [então] se recorre ao STJ [Superior Tribunal de Justiça], [onde] não é concedido, e se recorre ao STF, que algumas vezes concede o habeas corpus.
De uma outra forma, quando você caracteriza isso, que é um conceito normalmente discutido no sistema de Justiça, como crime, você coloca um receio muito grande dos juízes de decretar prisões. Porque estarão sujeitos à apreciação se aquela decisão é ou não é manifestamente desconforme com a lei.
E como mais um exemplo citaria o artigo 43, que diz que passa a configurar crime o descumprimento das prerrogativas dos advogados. Tem várias hipóteses que estão ali mencionadas. Veja, a partir de agora os advogados serão a única categoria profissional em nosso país, juiz não tem isso, membros do Ministério Público não têm isso, nenhuma outra profissão tem isso, cuja violação de suas prerrogativas passa a ser configurada como crime.
Então é usual do sistema de Justiça que o advogado às vezes pleiteie algum direito junto ao juiz, o juiz discorde por algum motivo, haja, portanto, como normalmente no sistema de recursos há interposição de recursos, o manejo de recursos, e muitas vezes esta matéria é revista ou não é revista.
Mas na hora em que se considera isto como crime podemos imaginar que haverá uma quantidade enorme de representação de advogados contra juízes e promotores, delegados, policiais e isso, sem dúvida nenhuma, dificultará sobremaneira a atuação desses profissionais.
Na prática, quais seriam os efeitos? Uma quantidade enorme de representações de advogados contra policiais, delegados, membros do Ministério Público e juízes. E é claro que isso atrapalha sobremaneira o funcionamento dessas instituições e particularmente quando se atua contra a criminalidade organizada, contra o crime financeiro, do colarinho branco, a corrupção.
Para uma reclamação de abuso de autoridade virar uma ação formal precisa da participação dos próprios integrantes do Ministério Público. Sim, quando a gente considera a possibilidade de que isso tenha uma ação penal e que ao final possa ter uma condenação. Mas veja que isso tudo serve também para representações, ou seja, para que acionando essas instituições todos que atuam no sistema de Justiça tenham a necessidade de se defender regularmente de todas essas acusações e imputações que venham a ser realizadas. Isso vai passar a ser corriqueiro na atuação judicial.
Mas de fato há um debate sobre a necessidade de se conter o abuso de autoridades. Sem dúvida, sem dúvida. A lei atual precisava ser revista. A magistratura e o Ministério Público sempre se colocaram à discussão, à disposição do Congresso Nacional para que a lei pudesse ser aperfeiçoada.
Particularmente cobrando que houvesse audiências públicas, que houvesse participação da sociedade e dos atores de Justiça na construção dessa nova lei. Infelizmente isso foi feito de maneira apressada, sem que houvesse esses espaços de participação e de construção e por isso mesmo nós achamos que a norma acabou ao final trazendo essa série de imperfeições.
A maioria dos pontos da nova lei já tem previsão legal. A mudança é que eles agora contemplam punição às autoridades que cometerem as infrações. O Ministério Público é um órgão ativo contra a impunidade. Não pode parecer incoerente que procuradores dessa vez sejam contra punições a colegas enquadrados em irregularidades, como as descritas nos pontos da nova lei? Veja, nós não fomos contra a lei, não fomos contra essa mudança. Estamos falando de alguns artigos específicos que dificultam bastante a atuação desses órgãos. Conceitos vagos, em qualquer tipo de crime, acabam trazendo insegurança muito grande.
O novo procurador-geral da República, Augusto Aras, não estava na lista tríplice da categoria. O que a categoria espera de Aras na chefia da Procuradoria? A equipe nomeada causou uma ótima impressão. Foi isso que eu ouvi dos colegas. Por duas razões. Primeiro porque são nomes realmente muito bons. São colegas com atuações longas para cada uma das áreas para as quais foram lotados.
Segundo porque houve a indicação de membros que participaram das administrações tanto do doutor Rodrigo Janot, tanto da doutora Raquel Dodge, quanto de outras administrações. O que mostra que a ideia seria trazer colegas independentemente de para quais administrações tenham servido que sejam competentes e possam bem executar as missões. A primeira impressão, portanto, foi muito boa e esse é um reconhecimento dos colegas e ouvi isso não só em grupos, mas em mensagens e conversas.
Antes de ser nomeado, Aras deu entrevista em que que parecia sinalizar submissão ao presidente da República. Como a categoria viu esta entrevista? Lembro de alguns pronunciamentos do presidente da República dizendo que gostaria de alguém que fosse alinhado, que tivesse uma afinidade de pensamento, chegou a mencionar certa vez que seria a dama num tabuleiro de xadrez.
Isso mostra uma incompreensão do presidente da República a respeito da independência que deve existir por parte de todos aqueles que vão chefiar a nossa instituição. Vamos lembrar que compete exatamente ao Ministério Público fiscalizar o Poder Executivo. Mais ainda. Compete ao procurador-geral da República investigar e até acusar o próprio presidente da República quando houver a prática de crimes.
Então é importante realmente que o novo procurador-geral atue de maneira a resguardar a independência da instituição sem prejuízo da harmonia que deve haver, sem dúvida nenhuma, e do diálogo com os outros Poderes.
Aras disse que há a necessidade de rever alguns procedimentos da Lava Jato. Era necessário que se dissesse de maneira mais clara quais seriam esses excessos e que procedimentos que devem ser revistos. De uma forma geral, toda a atuação do Ministério Público no que concerne a Lava Jato tem sido validada por várias instâncias da Justiça. Pela Justiça Federal, no Paraná, pelo TRF da 4ª Região, pelo STJ e algumas dessas matérias chegaram a ser analisadas pelo próprio Supremo.
Fica muito vago dizer que há excessos que precisam ser corrigidos sem que tenha possibilidade de conhecer quais são realmente essas ações que têm sido consideradas excessivas. Esse não tem sido o pronunciamento do Poder Judiciário. O Poder Judiciário tem validado toda essa atuação, pelo menos até agora.
Em seu discurso de posse, Aras disse que irá defender o direito das minorias. O discurso vem na contramão do que já disse o presidente Bolsonaro. Como o senhor viu esse ponto do discurso de Aras? É uma obrigação nossa. Dentre as várias missões que o Ministério Público tem em nosso país a defesa dos grupos vulneráveis é uma delas. E particularmente para o Ministério Público Federal existe uma obrigação de se posicionar em relação às liberdades públicas e a certos grupos.
Defender as minorias é um compromisso que o constituinte colocou na atribuição da nossa Constituição. Acho muito relevante que venhamos a compreender que, numa democracia, embora exista um princípio majoritário, exista a necessidade de reconhecer que todos aqueles que são minorias precisam ter os seus direitos respeitados também. Este é um papel que, sem dúvida nenhuma, não só compete à nossa instituição, mas um dos mais relevantes que precisam ser cumpridos.
Raio-X
Fábio George Cruz da Nóbrega, 48, nasceu em João Pessoa e é formado em direito pela UFPB (Universidade Federal da Paraíba). Iniciou a carreira como promotor de Justiça em 1994. Dois anos depois, ingressou no Ministério Público Federal. De 2004 a 2005 foi procurador-chefe da Procuradoria da República na Paraíba. Foi conselheiro do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), onde permaneceu até 2017.
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