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Carta Maior | Por Prabhat Patnaik – A marca registada de uma crise sistémica, distinta de uma crise cíclica ou esporádica do capitalismo, é que todo esforço para resolver a crise dentro dos limites vastos do sistema, definido em termos da sua configuração de classe predominante, apenas agrava a crise.
É neste sentido que o capitalismo neoliberal entrou agora numa crise sistémica. Esta não pode ser resolvida por meros remendos; e as tentativas de ir além de meros remendos – como por exemplo com a introdução do proteccionismo sem transcender a estrutura ampla da globalização neoliberal, ou seja, sem superar a hegemonia do capital financeiro internacional, que é a força motriz por trás desta globalização, tal como Trump está a fazer nos EUA – só agravará a crise.
Os sintomas da crise são bem conhecidos. A crise de 2008 foi seguida pela busca de uma “política de dinheiro barato” nos EUA e alhures, de modo que as taxas de juros foram deitadas abaixo, até quase zero. Isso mal conseguiu fornecer algum espaço temporário de respiração ao capitalismo mundial. Mas agora, mais uma vez, ele está confrontado com uma recessão iminente. Nos EUA, o investimento das empresas está em declínio e a produção industrial em Julho foi 0,2 por cento mais baixa do que no mês anterior. A economia britânica contraiu-se durante o segundo trimestre deste ano, assim como a da Alemanha. O quadro é praticamente o mesmo por toda a parte, tal como na Itália, Brasil, México, Argentina e Índia. Até mesmo a China está a testemunhar uma desaceleração da sua taxa de crescimento em consequência da recessão mundial.
A resposta dos decisores políticos em toda a parte a esta recessão emergente é propor mais uma vez um corte nas taxas de juros. O Banco Central Europeu, que já empurrou a sua taxa de juros chave para a região negativa, está a planear reduzi-la ainda mais. Na Índia, as taxas de juros já foram cortadas. A ideia por trás destes cortes nas taxas de juros não é tanto que taxas mais baixas causem maiores investimentos. É, em vez disso, que taxas mais baixas provoquem “bolhas” no preço dos activos – as quais promoveriam a procura agregada por meio de maiores gastos por parte daqueles que se sentem mais ricos devido às “bolhas” de tais preços de activos.
Seria preciso esclarecer porque esta tinha de ser a resposta típica de decisores políticos por toda a parte. No período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, ou seja, antes do aproximar da globalização neoliberal, os gastos do governo podiam ser aumentados a fim de promover a procura agregada sempre que houvesse uma ameaça de recessão. Os governos podiam elevar os défices orçamentais, se necessário, uma vez que os controles de capital estavam em vigor e não havia o perigo de fugas de capitais caso houvesse aumentos do défice orçamental.
Este fora o mundo visualizado por John Maynard Keynes, o famoso economista que foi um dos arquitectos da ordem económica capitalista do pós-guerra. Ele se opusera à internacionalização das finanças (“as finanças, acima de tudo, devem ser nacionais”, disse ele), com a justificativa de que tal internacionalização minava a capacidade do Estado-nação de aumentar o emprego tornando-o um prisioneiro da finança, a qual sempre se opunha a maiores gastos governamentais para esta finalidade. Como defensor do sistema capitalista, Keynes temia que, a menos que o Estado-nação pudesse aumentar suficientemente o emprego, o capitalismo não pudesse sobreviver à ameaça socialista.
Mas com maciças acumulações financeiras nos bancos metropolitanos, por causa dos contínuos grandes défices em conta corrente na balança de pagamentos dos EUA durante este período, e também, numa data posterior, por causa dos grandes depósitos de receitas ganhas pelos produtores da OPEP com as altas dos preços do petróleo na década de 1970, houve uma enorme pressão do capital financeiro em favor de um levantamento dos controles de capitais. Ele queria que todo o globo fosse aberto para que as finanças se movimentassem à vontade e, em última análise, isso aconteceu. A hegemonia do capital financeirointernacional foi então estabelecida, o que também significou uma retirada do Estado-nação de seu papel de manutenção do nível de emprego através da intervenção orçamental. O único modo de promover a procura agregada sob o regime do capitalismo neoliberal que continuou a existir foi portanto através do estímulo a “bolhas” de preços de activos; e a política de taxa de juros foi utilizada para este propósito.
Mas, ao contrário das despesas do governo, que podem ser reguladas à vontade, não se pode fazer aparecer uma “bolha” à vontade. Por algum tempo, nos anos noventa (a “bolha das dot.com” nos Estados Unidos) e nos primeiros anos deste século (a “bolha habitacional” nos EUA), este modo de estimular a procura agregada pareceu funcionar. Mas o colapso da “bolha” habitacional tornou as pessoas cautelosas e nenhuma nova “bolha” de magnitude semelhante apareceu, apesar de as taxas de juros serem reduzidas a zero.
Entretanto, há outro factor que actua poderosamente para reduzir a procura agregada dentro de cada país e no mundo como um todo; e este é o aumento da fatia do excedente na produção total. A globalização significou acima de tudo a livre circulação do capital, incluindo o financeiro, através das fronteiras, e isto resultou na relocalização de um certo número de actividades das metrópoles de altos salários para os países de terceiro mundo com baixos salários a fim de atender à procura global. Ao tornar os trabalhadores dos países avançados sujeitos à competição dos trabalhadores do terceiro mundo, isto tendeu a diminuir os salários dos primeiros. Ao mesmo tempo, os salários destes últimos continuam a permanecer num nível de subsistência nulo, porque as reservas de mão-de-obra do terceiro mundo não se esgotam apesar de tal relocalização. O vector das taxas salariais em todo o mundo portanto não aumenta, mesmo quando o vector das produtividades do trabalho por todo o mundo aumenta. Esta é a razão para o aumento da fatia do excedente dentro de cada país e no mundo como um todo.
Este aumento na participação do excedente cria uma tendência à superprodução, porque o consumo por unidade de rendimento é muito maior entre os assalariados do que entre os que recebem os excedentes. Esta tendência poderia ter sido compensada por um aumento nos gastos governamentais dentro de cada país. Mas, como isso não é mais possível, a única tendência contrabalançadora que é possível contra essa tendência rumo à superprodução é a formação de bolhas de preços de activos. Na ausência de tais bolhas, a tendência rumo a superprodução opera com força total, que é o que estamos hoje a assistir.
Como o instrumento convencional de reduzir taxas de juros não funciona em tal situação, e como os gastos do governo não podem ser aumentados para compensar a deficiência da procura agregada, os EUA sob Donald Trump tem tentado superar sua própria crise exportando-a para outros países, especialmente a China, através da adopção de medidas proteccionistas. Sobre toda uma gama de importações da China ele impôs tarifas de 25% e isto, por sua vez, levou a uma retaliação da China através da imposição de uma tarifa de 25% sobre um conjunto de importações dos EUA.
Esta guerra comercial, iniciada pelos EUA como forma de se livrar da crise, agora está a acentuar a crise da economia global, porque ela mina qualquer pequeno incentivo para investir entre os capitalistas do mundo. Longe de estimular uma nova bolha de preços de activos, o que era a intenção original por trás da redução das taxas de juros, ela tem como efeito provocar um colapso nos mercados de acções por todo o mundo. A Wall Street, por exemplo, testemunhou a maior queda do ano no dia 14 de Agosto; e em reacção mercados de todo o mundo também registaram quedas.
Se os gastos do governo pudessem ser aumentados dentro de cada país, então a necessidade de tais políticas de “mendigar teu vizinho” (“beggar-thy-neighbour”) não surgiria. Mesmo que se recorra a algum proteccionismo para assegurar que o aumento da procura causado pelos gastos do governo não “vazasse” para o exterior, isso não precisaria levar a qualquer redução nas importações de outros países uma vez que o próprio mercado estaria a crescer. Mas, na ausência de um aumento de despesas governamentais, às quais o capital financeiro internacional se opõe (razão porque a maior parte dos países aprovou leis que restringem a dimensão do défice orçamental), as políticas de empobreça teu vizinho permanecem como uma das poucas opções possíveis para um país. Isto, contudo, piora a crise para todos.
Isto é precisamente a marca registada de uma crise sistémica. Na medida em que a hegemonia do capital financeiro internacional continuar, e em que países permanecem presos no turbilhão de fluxos financeiros globais, não só a crise continuará como todo o esforço para ultrapassá-la, através de quaisquer meios disponíveis dentro do sistema, só agravará a crise. Ultrapassar a hegemonia do capital financeiro internacional exige, contudo, que dentro de cada país o povo trabalhador seja mobilizado em torno de uma agenda alternativa.
Prabhat Patnaik é economista, indiano (ver no Wikipedia)
*Publicado originalmente em peoplesdemocracy.in | Tradução de JF publicada originalmente em resistir.info
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