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OUTRASPALAVRAS | por Paulo Kliass – No primeiro semestre de 2019, em meio à crise, lucro dos bancos cresceu 20%; e seguimos despejando R$ 201 bi por ano em juros da dívida pública. Mas assistimos apáticos tanto aos desastres naturais quanto aos do financismo.
Um dos graves problemas que acometem a sociedade brasileira é a nossa impressionante capacidade de acomodação e incorporação dos desastres como se eles fossem algo normal em nosso meio. E aqui eu me refiro a todo o tipo de catástrofe, desde as ambientais até os fenômenos de ordem social e econômica.
As tragédias criminosas das barragens de Mariana e de Brumadinho não surtiram os efeitos necessários e desejados para alterar a rotina das grandes mineradoras, assim como os incêndios imensos continuam a provocar desmatamento em extensão continental. No campo das tragédias sociais, as marcas de 13 milhões de desempregados há vários anos se somam às rebeliões em unidades prisionais superlotadas com cenas de assassinato em massa, adicionadas de requintes de crueldade como a degola dos adversários.
Antes do Plano Real, a sociedade conviveu durante quase 2 décadas com elevadas taxas de inflação, num processo também de naturalização daquela verdadeira distorção das relações sociais e econômicas. No entanto, talvez a convivência com a crescente financeirização e sua forma tupiniquim de manifestação por essas terras seja um dos aspectos mais graves e mais crônicos dessa passividade. Nossa população sobrevive em um ambiente tóxico de elevadíssimas taxas de juros em seu cotidiano, também como que naturalizando essa chaga da extorsão financeira em estado bruto.
Para os bancos, tudo!
A responsabilidade por tal distorção tem nome e endereço conhecido. A cada mês, a cada trimestre, a cada semestre, a cada ano. Pouca importa a periodicidade escolhida para estampar as cifras escandalosas. A divulgação é rotineira e sua observação só vem confirmar a profunda injustiça que marca a distribuição da renda e do patrimônio em nosso país. As manchetes nunca falham. A ordem dos gigantes das finanças pode variar, mas o que se mantém como constante é o substantivo “lucro”.
Lucro dos bancos virou quase que uma subseção especial no interior das editorias de economia dos grandes meios de comunicação. Há poucos dias foram divulgados os números referentes ao primeiro semestre de 2019. Como sempre, mais uma confirmação da vergonha. Apenas os 4 maiores bancos apresentaram ganhos líquidos de quase R$ 43 bilhões. Para esse período, as instituições foram as seguintes:
Lucro líquido no 1º sem/2019 (em R$ bilhões)
Itaú | 13,9 |
Bradesco | 12,7 |
BB | 8,7 |
Santander | 7,1 |
O montante apurado para os primeiros seis meses do presente ano representou uma elevação superior em 20% aos ganhos dos 4 maiores bancos no mesmo período do ano passado. Na verdade, o comportamento dos lucros dos bancos vem apresentando uma sistemática de crescimento contínuo e ininterrupto há décadas. Em 2018, por exemplo, as 5 maiores instituições auferiram um lucro anual de R$ 86 bi. Esse valor é calculado depois de um minucioso processo daquilo que os especialistas chama gentilmente de “planejamento tributário”. Um nome bem cheiroso para a prática da sonegação com ares de respeito à legalidade. E mesmo assim esses valores podem ser distribuídos aos acionistas sem o pagamento de tributos, graças à isenção de lucros e dividendos.
Sacrifício para quem, cara pálida?
Esses dados ganham um significado ainda mais dramático caso sejam contextualizados em uma conjuntura de crise social e econômica aberta, com desemprego alarmante e número crescente de falências de empresas no setor real, aquelas que produzem bens ou oferecem serviços. Enquanto os responsáveis pela política econômica pregam e implementam a política de austeridade a todo custo, os orçamentos públicos veem minguar seus recursos para as áreas sociais. O discurso oficial exige sacrifício de todos para superar a crise. Mas os lucros dos bancos seguem intocáveis.
A sociedade parece que aceita resignada esse processo histórico de transferência de renda da grande maioria para uma parcela restrita e seleta. Na verdade, assistimos cotidianamente a essa verdadeira espoliação que as instituições financeiras praticam por meio de “spreads” abusivos e tarifas de serviços que fazem corar de vergonha qualquer dirigente desse tipo de instituição nos chamados países desenvolvidos. E tudo isso ocorre há décadas sem que o órgão encarregado por regular e fiscalizar o setor se manifeste. O Banco Central segue fazendo sua cara de paisagem e libera, de forma descarada, os agentes do oligopólio para que prossigam em sua cruzada anti-civilizatória.
E vejam que governos progressistas passaram por ali. Durante os 14 anos em que o PT esteve na Presidência da República, a regra foi também a manutenção desse ambiente assustador. Exceção feita à breve tentativa de Dilma de reduzir os juros e os “spreads” ocorrida sem sucesso em 2012, o fato é que o financismo sempre esteve no comando efetivo da política monetária e no controle de seus efeitos sobre a política de crédito e empréstimo. Uma loucura! Infelizmente, esse processo todo acaba por fortalecer a tese de que não haveria alternativas. Ou seja, a sociedade brasileira estaria fadada a ser obrigada a conviver sob a hegemonia arrasadora da banca.
Armadilha do superávit primário
A outra face da acomodação generalizada ao poder do financismo encontra-se na aceitação passiva da armadilha do superávit primário. Há mais de três décadas que a sociedade brasileira se vê sugada em sua essência pelas forças da lógica de favorecimento do sistema financeiro nacional e internacional. Esse mecanismo perverso impõe a austeridade fiscal a todo custo, com o objetivo de gerar saldos de recursos públicos para o pagamento de juros da dívida pública.
Nesse caso também os números são assustadores e sua divulgação sistemática parece não fazer efeito nenhum de rebeldia generalizada. E vejam que se trata de procedimento incorporado às rotinas da administração pública, com informações oferecidas de forma transparente nas páginas do próprio governo federal.
Os dados mais recentes na página do Banco Central nos relatam que no mês de junho passado foram direcionados R$ 17 bi para o pagamento de juros da dívida pública. Isso significa que foram dirigidos valores equivalentes a R$ 357 bi ao longo dos últimos 12 meses para esse fim. Enquanto o governo esmaga o orçamento da União e liquida órgãos responsáveis pelas políticas sociais, por outro lado está provado que o dinheiro existe. Está lá e corre livre, leve e solto para os drenos da dimensão financeira. Afinal, segundo a definição socialmente aceita por todos nós, o conceito de superávit primário não se aplica às despesas financeiras.
As informações oficiais consolidadas estão disponíveis na página da Secretaria do Tesouro Nacional desde 1997. Pois então, desde janeiro daquele ano até maio de 2019 o Brasil retirou de seus valores orçamentários o valor total de R$ 5,4 trilhões (a valores corrigidos para os dias de hoje). Uma perpetuação de uma política criminosa, que transferiu de forma sistemática ao longo desses 269 meses uma média anual de R$ 201 bi a uma parcela extremamente reduzida da sociedade que se beneficia desse parasitismo rentista.
O establishment conta com essa aceitação passiva da ordem reinante para seguir em frente com essa estratégia de apropriação da renda da maioria. Enquanto a sociedade brasileira mantiver a naturalização de procedimentos tão deletérios quanto os lucros abusivos e os juros escorchantes, nosso País continuará ser conhecido como paraíso da banca e das finanças.
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