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No massacre do Carandiru, em 1992, 111 presos foram mortos pela Polícia Militar; PMs foram julgados e condenados pela chacina no presídio / Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Pesquisa da Fundação Perseu Abramo mapeia homicídios violentos com três ou mais vítimas fatais
Emilly Dulce | Brasil de Fato | São Paulo (SP) – O Brasil assistiu, nesta terça-feira (20), à execução de um sequestrador que portava uma arma de brinquedo. A ação foi comemorada pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), e pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). O assassinato é apenas um entre vários que vêm sendo realizados pelas forças de segurança no país, com cada vez menos resistência ou oposição por parte dos chefes do Executivo.
Entre 2016 e 2018, a imprensa reportou a ocorrência de 242 chacinas no Brasil, com 1.175 vítimas fatais. Em pelo menos 21,1% dos casos relatados, há suspeita de participação de policiais, segundo a pesquisa “Chacinas e Politização das Mortes no Brasil”, realizada pela Fundação Perseu Abramo.
De acordo com o relatório, em 94% das ocorrências houve utilização de arma de fogo. Nos homicídios em geral, o percentual chega a 72%.
A próxima etapa da investigação, realizada pelo projeto Reconexão Periferias, é a produção de um mapa com informações de chacinas ocorridas durante toda a última década.
Por trás das mortes estão diversas dinâmicas da violência no Brasil, como ação ilegal de policiais, facções criminosas e milícias, rebeliões em presídios, feminicídios e conflitos agrários.
As chacinas, portanto, não são um fenômeno homogêneo, destaca a pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, socióloga e líder do Grupo de Estudos Sobre Violência e Administração de Conflitos (Gevac) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Ela explica que a participação de policiais – dentro e/ou fora de serviço em grupos de extermínio – é um fenômeno muito próprio do Brasil, e destaca que o uso privado da violência exacerbada por agentes de segurança do Estado desmente a lógica de que apenas o crime é violento.
“Nós tínhamos uma expectativa de encontrar muito da violência social e o que a gente está vendo é muito da violência estatal. Esses conflitos que acontecem dentro das penitenciárias e aqueles com participações de policiais têm a ver com dinâmicas do Estado, e não apenas com uma violência disseminada na sociedade”, afirma Sinhoretto.
Escassez de informações
A maior parte dos casos levantados diz respeito à atuação policial em serviço. Conforme o relatório, o estado do Rio de Janeiro se destacou pelo maior número de chacinas cometidas por policiais durante operações (planejadas).
Em São Paulo, apesar de as taxas de homicídios dolosos terem caído, ainda são recorrentes os casos de chacinas, muitos deles ligados a policiais fora de serviço. O levantamento pretende caracterizar as ocorrências, vítimas, autores, instrumentos, prováveis motivações e eventuais repercussões dos casos.
“Uma coisa que fica muito clara é que não dá para tratar todos os casos da mesma forma. Eles têm motivações muito distintas, então isso significa, necessariamente, que o que vai funcionar para reduzir a violência em São Paulo é diferente do que vai funcionar no Rio de Janeiro ou no Ceará”, enfatiza o pesquisador e sociólogo David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Na ausência de estatísticas oficiais sobre chacinas, os pesquisadores recorreram à notícias de veículos de imprensa de todo país para investigar e divulgar as ocorrências. Apesar de não ser tipificada pelo Código Penal, a terminologia é bastante utilizada pela mídia para designar homicídios violentos com três ou mais vítimas fatais.
A base de dados, coletada pelo buscador Google, apresenta limitações inerentes à relação entre atividade jornalística e fontes policiais. Raça/cor, por exemplo, é uma informação que grande parte dos veículos de imprensa não tem como prática noticiar. Na pesquisa, a fonte para a classificação foram as fotos disponibilizadas nas reportagens.
“Se por um lado não é um dado oficial, por outro ele permite a aproximação de uma informação que não existe oficialmente. E também traz detalhes e características do caso, das vítimas, dos autores e da motivação”, analisa Marques.
Sinhoretto argumenta que os resultados parciais revelam um paradoxo: por um lado, existe a banalização da extrema violência e, por outro, as ocorrências de chacinas despertam reações de organizações populares. Surgidos da dor da perda de parentes, movimentos como “Mães de Maio” e “Mães de Acari” denunciam e exigem justiça pelas violências do Estado.
“Só que essa luta contra a violência não consegue se exprimir em políticas públicas. Quer dizer, quem elabora as políticas públicas de Segurança não necessariamente responde aos movimentos sociais de luta contra a violência. Então, as políticas públicas de redução da violência no Brasil estão, historicamente, marcadas pela ausência de participação social, mesmo aquelas que tiveram a intenção de se aproximar da linguagem dos direitos humanos”, avalia a socióloga.
Os pesquisadores apontam que o aparato estatal deveria estar voltado para a prevenção da violência — algumas das tendências poderiam ser previstas e evitadas — e resolução de conflitos sociais ligados com esses contextos. Sinhoretto e Marques ressaltam a importância de políticas públicas mais efetivas de controle da atividade policial, punição para atuações violentas e investimentos em um trabalho qualificado de investigação e inteligência com ações de curto, médio e longo prazos.
Insegurança Pública e facções prisionais
A avaliação dos sociólogos é que boa parte da violência no Brasil — não apenas o fenômeno das chacinas — está associada ao “efeito perverso das políticas estatais”. Na prática, segundo eles, o funcionamento e a administração do sistema de Justiça brasileiro não colaboram para a redução da violência no país.
Sinhoretto argumenta que não adianta priorizar o encarceramento em massa enquanto não se promova uma proposta efetiva de gestão penitenciária ou que realmente possibilite a reintegração social dessas pessoas.
“O que acontece no Brasil é o encarceramento em massa, onde as cadeias são depósitos de pessoas e, disso, brotam novos conflitos, que acabam realimentando o ciclo da violência ao invés de preveni-lo. Então, nós acreditamos que as respostas que estão sendo dadas a esses eventos violentos não são satisfatórias. Elas não amenizam o problema e, ao contrário, vieram agravar a situação por causa do encarceramento desenfreado”, analisa Sinhoretto.
Para Marques, é preciso priorizar a punição dos crimes mais graves e violentos. O que acontece, no entanto, é o encarceramento de jovens, na maior parte das vezes, pobres, negros, presos com pouca quantidade de drogas, sem armas de fogo e/ou cometimento de violência.
No cárcere, esses jovens — que cometeram delitos menos graves — são expostos a um ambiente de disputas entre diversos grupos e facções criminosas, explica o pesquisador. Produzido pelo FBSP, o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública: Análises dos Estados e Facções Prisionais” analisa a expansão do crime organizado nos anos de 2014 a 2017.
Em 29 de julho deste ano, uma rebelião no Centro de Recuperação Regional de Altamira (PR) deixou pelo menos 58 mortos, alguns decapitados. Dois dias depois, na transferência de detentos, realizada com o objetivo de separar lideranças de facções criminosas em disputa, outros quatro foram mortos no interior de um veículo oficial.
De acordo com texto de introdução do relatório do FBSP, que apresenta um mapa da Segurança Pública nos 27 estados brasileiros, escrito por Camila Nunes Dias e Bruno Paes Manso, “enquanto não conseguirmos transformar o nosso modelo de política de segurança cujos pilares são a guerra às drogas, a polícia militar e a prisão, permaneceremos presos neste labirinto esquizofrênico em que a ânsia da população por uma sociedade pacificada tem como respostas ações que aumentam a violência letal e aprofundam o nosso histórico fosso socioeconômico, a exclusão e a vulnerabilidade da democracia brasileira”.
“É um sistema prisional dominado pela lógica das facções, onde o Estado não consegue oferecer condições dignas de cumprimento de pena. Isso significa, necessariamente, que você está tirando jovens de baixa inserção criminal e colocando-os no centro das redes do crime organizado. Na prática, isso só fortalece o poder dessas facções”, corrobora Marques.
Futuro temerário
Em dezembro de 2018, o então presidente Michel Temer (MDB) instituiu o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSP) com a finalidade de reduzir homicídios e demais crimes violentos letais. Com duração de 10 anos, outras metas definidas foram a prevenção e repressão de situações de exploração sexual, o enfrentamento às estruturas do crime organizado, assim como a elevação do nível de percepção de segurança da população.
Marques pondera, no entanto, que o PNSP tem sido ignorado pelos gestores de Segurança Pública. Ele argumenta que os estudiosos da violência no país se preocupam ainda mais com o governo Bolsonaro na incerteza sobre o futuro do projeto.
O pesquisador critica as políticas adotadas pelo atual governo, como a flexibilização do porte e da posse de armas de fogo e o pacote “anticrime”apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro.
“Era uma bandeira durante a campanha presidencial que a questão da Segurança Pública seria priorizada. O que nós temos visto não tem nada a ver com projeto político ou propostas mais concretas que, de fato, sirvam ao aperfeiçoamento da Segurança Pública”, argumenta Marques.
“Além do que, nós temos uma preocupação muito grande hoje – como pessoas que estudam a violência no Brasil – com o futuro das estatísticas criminais, as estatísticas oficiais. Porque nós temos um governo que está intervindo na produção de informação científica do próprio Estado”, manifesta Sinhoretto sobre a qualidade dos levantamentos oficiais e a importância da imprensa como uma fonte independente do governo.
Mais do que alertar para o problema, a pesquisa “Chacinas e Politização das Mortes no Brasil” tem o objetivo de preparar o terreno para a construção de alternativas, em termos de políticas públicas, para a garantia da democracia e da vida. O relatório pretende se consolidar como uma base de dados em constante evolução para monitorar as chacinas no Brasil e cooperar para a maior compreensão do fenômeno.
Edição: Rodrigo Chagas
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