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Em entrevista ao Brasil de Fato, reitor da UFC (Universidade Federal do Ceará) define Future-se como um “projeto destruidor para as universidades” / Foto: Ribamar Neto/UFC
Para Henry Campos, a pluralidade socioeconômica dos estudantes das federais está em risco com política de Bolsonaro.
Lu Sudré | Brasil de Fato | São Paulo (SP) – “É um programa simples que vai dar nova dinâmica para a Educação”. Com essas palavras, Jair Bolsonaro definiu o programa Future-se, anunciado em julho por seu governo em meio a uma profunda crise na área da educação devido ao corte de 30% no orçamento das universidades federais.
O projeto prevê a criação de um fundo de cerca de R$ 102 bilhões para atrair investimentos privados nas instituições de ensino superior do país, mas causou mal-estar e preocupação dentro de setores da comunidade acadêmica.
Com a ideia central de diminuir a participação do Estado na manutenção das federais, o plano de financiamento defendido por Abraham Weintraub, ministro da Educação, permitirá que Organizações Sociais (OSs) compartilhem a gestão das universidades. O Future-se também permitirá a contratação de professores sem concurso público.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Henry Campos, reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC), analisa que o projeto abre espaço para a privatização do ensino superior.
“É inadmissível conviver com uma proposta dessa em um momento em que as universidades são duramente penalizadas com cortes sucessivos em seus orçamentos, porque além dos 30% já houve cortes adicionais de custeio. A minha universidade, por exemplo, há duas semanas, foi penalizada com um corte adicional de R$1,3 milhão em custeio”, afirma Campos.
Para o professor associado da Université Paris-Descartes, a pluralidade socioeconômica das federais está em jogo. “Esse projeto significa claramente o fim da democratização das universidades, processo que nós temos tido nos últimos anos. Hoje, na nossa universidade [UFC], 60% dos alunos são oriundos de escola pública. É um mecanismo de ascensão social dos mais relevantes”, ressalta Henry.
Segundo pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), os universitários brasileiros que ingressam o ensino superior nas instituições públicas são, em sua maioria, pessoas de baixa renda, negros e mulheres. O estudo endossa que a democratização no ensino superior de fato aconteceu nos últimos 15 anos. A inclusão de estudantes mais pobres, por exemplo, com renda familiar per capita de um salário mínimo e meio, subiu de 42,8% para 70,2% de 2003 para 2018.
Preocupado com o desmonte da bem-sucedida política de expansão universitária pública, o reitor da UFC, lança a pergunta: “Qual o patrimônio maior da sociedade brasileira que não suas universidades públicas?”.
Confira entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: O que o Future-se representa para o ensino superior brasileiro? Qual sua análise sobre essa proposta?
Henry Campos: É uma pergunta difícil de responder com a especificidade que merece, até porque é uma proposta muito pouco clara. Muito evasiva. E que suscita, por isso mesmo, muita dúvida e muita insegurança no meio acadêmico.
Essa questão do fundo, por exemplo, não é clara. O que faz pensar que esse fundo seria constituído em parte pelo orçamento atual das universidades e outra parte pela alienação de imóveis da União, preferencialmente das universidades. Estamos em um processo que não traz segurança e, pelo contrário, assinala e sinaliza um futuro muito incerto.
É inadmissível conviver com uma proposta dessa em um momento em que as universidades são duramente penalizadas com cortes sucessivos em seus orçamentos, porque além dos 30% já houve cortes adicionais de custeio. A minha universidade, por exemplo, há duas semanas, foi penalizada com um corte adicional de R$ 1,3 milhão em custeio.
Então, como podemos debater qualquer coisa nesse sentido, ou dar algum crédito para uma proposta vinda de um governo que age dessa maneira. E que não tem mostrado, nenhuma intenção, em fazer um grande investimento na educação. Seja na superior ou na educação básica. Há muita apreensão, muita insegurança e muita insatisfação com relação a isso.
O que está sendo discutido é principalmente a questão do investimento privado nas universidades. Qual sua opinião sobre esse e outros pontos do projeto?
Tudo aponta para uma privatização. Essa questão da universidade ser administrada por uma Organização Social (OS)… Será uma única? Será uma organização social por universidade?
Tem muita coisa que se coloca que as universidades já fazem e que precisam de condição para fazer melhor. A universidade já arrecada recursos. O problema é que quando podemos arrecadar recursos, tem um determinado limite. Depois o governo confisca porque vai pra conta única da União.
Então, nos deem liberdade e nós arrecadamos. Diminuiremos o custo das universidades para o Ministério da Educação. Vamos fazendo isso progressivamente. Não precisamos de uma proposta de Organização Social.
E nem de uma proposta completamente absurda como, por exemplo, remunerar professor por trabalho científico publicado. O que é isso? O Brasil é um dos grandes produtores de ciência no mundo: 95% das pesquisas são feitas nas universidades públicas.
Como é que se propõe abolir concurso público na universidade? Isso é sério? Qual seriedade que existe? É dar vez a privatização e todos os mecanismos que regem as entidades que se orientam pelo lucro. É muito claro que tudo está caminhando nessa direção.
Então, sua avaliação é que a proposta é danosa…
É uma proposta absurda, inaceitável. Ninguém pode ser convencido do contrário principalmente porque não se diz como isso vai ser feito. Pelo menos 16 leis teriam que ser mudadas para que isso aconteça.
Esse projeto significa claramente o fim da democratização das universidades, processo que nós temos tido nos últimos anos. Hoje, na nossa universidade [UFC], 60% dos alunos são oriundos de escola pública. É um mecanismo de ascensão social dos mais relevantes.
Uma parte, diria mais que 50% dos alunos, tem renda familiar a um salário mínimo e meio. São os primeiros de várias gerações a ter acesso à universidade. A sociedade precisa estar atenta para isso. Estamos correndo um sério risco.
Temos uma universidade diversa, plural, com grupos étnicos merecidamente contemplados por meio de cotas. Podemos perder tudo isso, nossa autonomia, nossa governança, que só faz melhorar… Nós somos controlados diariamente pelos órgãos de controle.
Possuímos uma posição muito boa com relação ao sistema de governança. Reconhecido pelos órgãos de controle. Pelo Tribunal de Contas da União (TCU), pela Controladoria-Geral da União (CGU). Seja a governança de maneira geral ou da tecnologia da informação. É uma falácia dizer que as universidades são mal administradas, não é verdade.
Agora, desde 2014 estamos sofrendo restrições orçamentárias. O dinheiro só encolhe e continuamos dando continuidade ao processo que tinha sido desenhado. Realmente, é um golpe. É um duro golpe na educação superior pública.
E é interessante que tudo isso acontece de par. Ocorre em um momento em que está havendo a fusão de grandes conglomerados de educação privada que certamente estão fortalecidos. E que, obviamente, em uma situação dessa, onde as leis passam a ser outras, vão poder absorver. Vai ser lei de mercado. É realmente muito preocupante.
Tem uma previsão de que ações do Fundo poderão ser negociados na Bolsa. Como isso funcionará?
Isso é uma pura falácia. Não há nenhuma indicação de que esse fundo terá liquidez. Qual é a segurança que se vai ter de liquidez desse Fundo para dizer que ele vai ser negociado na Bolsa de ações e que será valorizado? Nenhuma.
Isso é um absurdo. Deixa as universidades jogadas a sorte e ao acaso, e a todo um jogo de interesses em que se vai manipular e certamente favorecer os interesses de grandes conglomerados da educação privada. É a destruição do sistema de unidade das universidades federais do país.
Em longo prazo, com as sinalizações que o governo Bolsonaro tem colocado para as universidades, como o senhor analisa que será o futuro das federais?
O futuro não existirá. A tendência é que as universidades morram de inanição aos poucos. Como já começam a sofrer nesse momento. Não temos a menor segurança de como chegaremos ao fim do ano.
Na minha universidade, por exemplo, teremos recursos para trabalhar até o fim de agosto. E mais nada. Quando é que vão ser liberado mais recursos? Se quer falar em futuro da universidade, tem que começar criando um momento diferente e não um em que deixa a universidade sem condições de funcionamento com esses cortes.
Outra coisa: Por que essa proposta não foi construída as claras, construídas com as universidades? Dizem que houve discussão.. Uma apresentação e um show midiático, onde tudo foi contato e pegou todo mundo de surpresa? Realmente é um absurdo. É uma tristeza, uma lástima. Espero que a universidade resista a esse projeto. Que tenhamos apoio, no Congresso, para combatê-lo porque é um absurdo.
O que significa um governo, no primeiro semestre, decidir por esse tipo de projeto?
É muito claro que há todo um interesse, uma obsessão pela questão ideológica. As universidades como centro de pensamento livre não são de direita e nem de esquerda, por mais que se procure rotular. São centro de pensamentos livres indispensáveis para o crescimento de qualquer sociedade. Há essa preocupação em introduzir um mecanismo de controle nas universidades.
Qual a marca que o governo Bolsonaro deixa no ensino superior público ao propor esse projeto?
É uma profunda tristeza. É uma falta de respeito, as coisas sendo tratadas de uma maneira pouco respeitosa. Medidas realmente muito estranhas. É uma obsessão pela ideologia, tudo é ideológico. Isso é terrível. Está nos colocando em uma posição vergonhosa no mundo.
As posições que tem sido tomadas pelo Brasil, o descompromisso com as metas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), para atingir os objetivos do milênio… Isso é muito triste. Essa questão de querer esconder o aumento do desmatamento. Infelizmente, não é um governo do qual possamos nos orgulhar. É um governo que divide a sociedade, estimula a violência, o preconceito. É muito preocupante para as próximas gerações o país que teremos.
Lamentamos muito e esperamos que, de alguma maneira, o bom senso prevaleça, e que se faça uma análise. Há questões muito mais graves a serem tratadas e que as universidades não se recusam a discutir. Esse projeto é destruidor para as universidades. Qual o patrimônio maior da sociedade brasileira que não suas universidades públicas?
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira
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