PLANTÃO BRASIL – No material que o Intercept diz ter recebido de uma fonte anônima, há quase 1 milhão de mensagens, totalizando um arquivo com mais de 30?000 páginas. Só uma pequena parte havia sido divulgada até agora — e ela foi suficiente para causar uma enorme polêmica.
Em parceria com o site, VEJA realizou o mais completo mergulho já feito nesse conteúdo. Foram analisadas pela reportagem 649?551 mensagens. Palavra por palavra, as comunicações examinadas pela equipe são verdadeiras e a apuração mostra que o caso é ainda mais grave. Moro cometeu, sim, irregularidades.
Fora dos autos (e dentro do Telegram), o atual ministro pediu à acusação que incluísse provas nos processos que chegariam depois às suas mãos, mandou acelerar ou retardar operações e fez pressão para que determinadas delações não andassem. Além disso, revelam os diálogos, comportou-se como chefe do Ministério Público Federal, posição incompatível com a neutralidade exigida de um magistrado.
Na privacidade dos chats, Moro revisou peças dos procuradores e até dava bronca neles. “O juiz deve aplicar a lei porque na terra quem manda é a lei. A justiça só existe no céu”, diz Eros Grau, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, falando em tese sobre o papel de um magistrado. “Quando o juiz perde a imparcialidade, deixa de ser juiz.”
Dentro da relação estabelecida pela dupla, chama atenção também o momento em que Dallagnol dá dicas ao “chefe” sobre argumentos para garantir uma prisão. Isso aconteceu em 17 de dezembro de 2015, quando Moro informa que precisa de manifestação do MPF no pedido de revogação da prisão preventiva de José Carlos Bumlai, pecuarista e amigo de Lula. “Ate amanhã meio dia”, escreve. Dallagnol garante que a ação será feita e acrescenta: “Seguem algumas decisões boas para mencionar quando precisar prender alguém…”. À luz do direito, é tão constrangedor quanto se Cristiano Zanin Martins fosse flagrado passando a Moro argumentos para embasar um habeas-corpus a favor de Lula.
Não seria um escândalo se um magistrado atuasse nas sombras alertando um advogado de que uma prova importante para a defesa de seu cliente havia ficado de fora dos autos? Pois isso aconteceu na Lava-Jato, só que em favor da acusação. Uma conversa de 28 de abril de 2016 mostra que Moro orientou os procuradores a tornar mais robusta uma peça. No diálogo, Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa em Curitiba, avisa à procuradora Laura Tessler que Moro o havia alertado sobre a falta de uma informação na denúncia de um réu — Zwi Skornicki, representante da Keppel Fels, estaleiro que tinha contratos com a Petrobras para a construção de plataformas de petróleo, e um dos principais operadores de propina no esquema de corrupção da Petrobras.
Uma das obsessões de Moro envolvia manter os casos da Lava-Jato em seu poder em Curitiba, a exemplo dos processos de Lula do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. Nesse esforço, o magistrado mentiu a um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) ou, na hipótese mais benigna, ocultou dele uma prova importante, conforme mostra um dos diálogos.
A conversa em questão se refere ao caso de Flávio David Barra, preso em 28 de julho de 2015, quando presidia a AG Energia, do grupo Andrade Gutierrez. Sua detenção ocorreu na Operação Radioatividade, relacionada a pagamentos de propina feitos por empreiteiras, entre elas a Andrade Gutierrez, a Othon Luiz Pinheiro da Silva, da Eletronuclear, responsável pela construção da usina nuclear Angra 3.
Em 25 de agosto, a defesa de Barra pede ao ministro do STF Teori Zavascki a suspensão do processo tocado pela 13ª Vara de Curitiba, alegando que Moro não tinha competência para julgar o caso por haver indício de envolvimento de parlamentares, entre eles o então senador Edison Lobão (MDB-MA).
Diante da reclamação, Zavascki cobra explicações de Moro, que diz não saber nada sobre o envolvimento de parlamentares.
A relação entre Moro e Dallagnol era tão próxima que abre espaço para que eles comemorem nas conversas o sucesso de algumas etapas da Lava-Jato, como se fossem companheiros de trabalho festejando metas alcançadas.
Em 14 de dezembro de 2016, Dallagnol escreve ao parceiro para contar que a denúncia de Lula seria protocolada em breve, enquanto a de Sérgio Cabral já seria registrada no dia seguinte (o que de fato ocorreu). Moro responde com um emoticon de felicidade, ao lado da frase: “ um bom dia afinal”. A proximidade rendeu ainda lances curiosos.
Em 9 de julho de 2015, Dallagnol saúda o colega: “bem vindo ao telegram!!”. Cinco meses depois, dá dicas ao juiz de como usar o programa no desktop, enviando no chat um link para o download. “Se puder me mandar no e-mail, agradeço. O tico e o teco da informática aqui não são muito espertos”, responde Moro. Em março de 2017, Dallagnol escreve ao juiz para tirar uma dúvida: ele assina o primeiro nome com ou sem acento? O motivo é que o procurador estava revisando um livro sobre Moro.
“Não uso normalmente o acento”, responde o juiz. Em julho de 2018, Dallagnol atua como assessor de imprensa, perguntando a Eduardo El Hage, um colega do Ministério Público Federal no Rio, detalhes de um pedido de participação de Moro em um programa do canal fechado HBO: “Eles contataram o Moro aqui e ele queria ter o contexto e informações que possam ser úteis pra ele decidir se atende”.
Em um dos períodos mais tensos da operação, o que se seguiu à ação do juiz que torna público o famoso trecho do grampo telefônico em que Dilma Rousseff envia o “Bessias” para entregar a Lula o termo de posse em seu ministério, Dallagnol combina em um dos chats com procuradores uma nota de apoio a Moro e repassa ao grupo uma sugestão do próprio juiz para o texto. Na mesma época, Moro também recebe um afago e conselho de um interlocutor no Telegram (tudo indica, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima). “O movimento seria nas sombras, como você mesmo disse”, escreve, referindo-se ao convite de Dilma para Lula. “O seu capital junto à população vai proteger durante um tempo. As coisas se transformam muito rápido.”
Na terça 2, Moro (que, por sinal, não faz mais parte da Lava-Jato) ficou sete horas no Congresso respondendo a parlamentares sobre o caso. Repetiu o que tem dito nas últimas semanas: os diálogos divulgados foram fruto de um roubo, podem ter sido editados e, mesmo verdadeiros, não apontam nenhum tipo de desvio.
A cada nova revelação, fica mais difícil sustentar esse discurso. Na sentença em que condenou Lula, o ex-juiz anotou que “não importa quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você”. A frase cabe agora perfeitamente em sua situação atual.
Levado ao Ministério da Justiça para funcionar como uma espécie de esteio moral da gestão Bolsonaro, ele ainda goza de grande popularidade, mas hoje depende do apoio do presidente para se manter no cargo. Independentemente do seu destino, o caso dos diálogos vazados representa uma oportunidade para que o país discuta os excessos da Justiça e o fortalecimento dos direitos do cidadão. Um país onde as instituições funcionam não precisa de nenhum Super-Homem.
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